A pregação do Evangelho e a cultura

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O filme “Brincando nos Campos do Senhor” é antigo e talvez a maioria não se lembre mais dele, mas foi uma crítica ao trabalho missionário entre indígenas. Lembro-me vividamente quando foi lançado em 1991, e a repercussão que teve na Mídia da época. Muitos que o assistiram foram convencidos de que a presença missionária entre indígenas trazia prejuízos graves à cultura e à identidade indígenas. Uma das cenas mais emblemáticas do filme é a da missionária correndo atrás de uma mulher indígena para colocar-lhe, à força, um sutiã, para que esta “cobrisse a sua vergonha”. A questão da relação entre o evangelho e a cultura é, portanto, tema recorrente e de grande importância no que diz respeito à comunicação do Evangelho, em qualquer lugar, época ou situação.

Em Atos 17.16-34, nos deparamos com um dos textos mais ilustrativos no que diz respeito à comunicação do Evangelho em contexto transcultural. Nele, Lucas narra a experiência e tentativa do apóstolo Paulo de comunicar o evangelho aos moradores da cidade de Atenas. A passagem é rica em ensinamentos e princípios missiológicos e nos dá a dimensão dos elementos que estão envolvidos no processo de comunicação do evangelho. A título de ilustração, apresento alguns desses princípios:

A pregação do Evangelho nunca ocorre no vácuo cultural

O que desejo afirmar aqui é que quando um missionário vai a algum lugar e prega a mensagem, seu público alvo não se encontra com a mente vazia, como uma “tabula rasa”, esperando para ela ser preenchida com o conteúdo apresentado pelo missionário. Note que quando Paulo inicia a sua pregação (verso 22) ele reconhece que os atenienses possuíam de antemão conceitos e “verdades” desenvolvidas em sua realidade cultural e que estes, de fato, serviam a eles como uma tentativa de fazer sentido da vida e dar explicação para as realidades últimas, inclusive nas questões religiosas. A antropologia cultural e especialmente o conceito de cosmovisão são úteis para que o missionário pesquise e descubra quais elementos culturais formam essa cosmovisão. No caso dos atenienses, Paulo percebeu que em sua preocupação religiosa os atenienses eram politeístas, ou seja, acreditavam na existência de muitos deuses.

A observação da cultura é fundamental para entender os anseios e preocupações do público-alvo

Note que enquanto Paulo esperava seus colegas de equipe que haviam ficado em Beréia (Atos 17.14), ele passou a observar a cidade e seus habitantes. Ser um bom observador é muito importante para o missionário. Estar atento aos anseios e preocupações do público alvo não somente abre oportunidades para o estabelecimento de pontes de comunicação, mas também desvenda os elementos culturais mais reveladores dos anseios e preocupações do povo. Há missionários que se precipitam e não esperam o momento adequado para começar a pregar. É preciso antes conhecer a cultura do povo, escutar, escutar e escutar suas histórias, observar tanto o passado quanto o presente. É fundamental relacionar-se e não ter receio de se expor aos elementos culturais daquele povo, ainda que isso venha a trazer alguma reação de indignação ou surpresa.

A comunicação do Evangelho considera as demandas e indagações da cultura local

O apóstolo Paulo estava consciente de que tinha uma mensagem universal e que essa verdade poderia ser comu- nicada e aplicada a qualquer contexto cultural. É exata- mente por essa convicção que ele se aventura no mundo gentílico por entender que o que tinha a dizer era relevante para eles também. Ao ligar a sua mensagem a aspectos culturais e filosóficos locais, o apóstolo demonstra empatia para com o povo alvo, mas não apenas isso. Demonstra tam- bém que ele deseja fazer-se claro, compreendido e aceito. Em Romanos 15.20-21 ele diz que seu objetivo é pregar o evangelho não onde Cristo já tenha sido nomeado para não edificar sobre fundamento alheio. E continua dizendo, “antes hão de vê-lo… e compreendê-lo os que nada tinham ouvido a seu respeito”. O processo de compreensão de uma mensagem passa obrigatoriamente pelas categorias comunicacionais que envolvem não somente símbolos, isto é, um código comunicativo, mas também um contexto. Essa combinação de código e contexto faz com que haja possibilidade real de compreensão da mensagem.

Apresentar o novo e de alguma forma relacioná-lo ao velho é uma estratégia eficiente de comunicação

Embora seja uma tarefa arriscada, há dois aspectos a se considerar aqui. Primeiro, apesar da queda e dos desvios resultantes dela, o homem possui a imagem de Deus e essa imagem faz com que esse homem “tateie” em busca dessa verdade (Atos 17.27); segundo, Deus opera por meio da graça comum e por meio de sua graça se faz conhecido por meio de sua revelação geral (Salmo 119, Romanos 1.19- 20). De qualquer forma, o homem necessita da revelação especial para ter conhecimento de Cristo, por meio da pregação do Evangelho. Por isso, o missionário não pode se satisfazer apenas da religiosidade do povo, ainda que ela apresente algum aspecto que esteja em concordância com a revelação geral. As distorções na perspectiva de como os povos interpretam a realidade é um fato (leia novamente Romanos 1) e o fato de que em vez de glorificar a Deus, passaram a glorificar aspectos da criação os torna indesculpáveis. Essas distorções a Bíblia chama de pecado. A mensagem do Evangelho é, portanto, um chamado ao arrependimento e à mudança de cosmovisão.

Embora o novo não seja de fato totalmente novo, ele desafia os velhos conceitos

Note que mesmo fazendo uma ponte entre o que era conhecido, isto é, os elementos culturais e religiosos dos atenienses (o Deus desconhecido), Paulo não deixou passar a oportunidade de demonstrar que as tentativas culturais de se chegar à verdade não terão êxito sem o conheci- mento da revelação especial. De qualquer forma, o homem necessita da revelação especial para ter conhecimento de Cristo, por meio da pregação do Evangelho. Por isso, o missionário não pode se valer apenas da religiosidade do povo, ainda que esta apresente algum aspecto que esteja em concordância com a revelação geral. O problema não está na revelação geral. Está nos óculos manchados pela queda que fez com que os povos não consigam perceber a realidade pela visão de Deus.

Conclusão

A mensagem do Evangelho é, portanto, um chamado ao arrependimento e à mudança de cosmovisão (Atos 17.30). Ao arrependimento porque todos pecaram e estão distantes da glória de Deus (Romanos 3.23); à mudança de cosmo- visão, pois a única maneira de interpretar corretamente a realidade é pela ótica de Deus e essa é conhecida por meio da Revelação Especial, a Escritura. O evangelho é concebido por meio dessa revelação especial e conclama todos os povos ao arrependimento e à submissão a Cristo.

Rev. Norval da Silva

Fonte: APMT

RETIRO IP SEMEAR 2023

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