Rev. Valdeci Santos
A história do cristianismo está repleta de referências a comunidades domésticas onde os cristãos se reuniam para celebrar e propagar sua fé. Desde o início da igreja cristã em Jerusalém, observa-se que “todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo” (At 5.42). Mais tarde, o apóstolo Paulo menciona alguns irmãos que hospedavam igrejas em suas casas (Cl 4.15 e Fm 2). Certamente estas referências não podem ser tomadas como normativas a ponto de se defender que a única estratégia válida para o avanço do reino são as reuniões domésticas. Os que assim procedem acabam por reduzir a evangelização a apenas um aspecto e desprezar alternativas nesta área. Todavia, as inúmeras referências ao uso de comunidades domésticas na evangelização deveriam ser interpretadas, no mínimo, como indicativo da relevância desta estratégia especialmente aplicada ao cenário urbano.
O contexto urbano é marcado, dentre outras coisas, pela distância entre as pessoas, bem como pela dificuldade de locomoções. Solidão e anonímia são parceiros constantes neste ambiente. Dessa forma, as vantagens oferecidas pelas reuniões em pequenos grupos ou comunidades domésticas são inumeráveis. Talvez seja por esta razão que os grupos familiares se tornam cada vez mais comuns nas grandes cidades e algumas igrejas têm redescoberto uma antiga estratégia missionária.
Chamado de “pequenos grupos” por alguns, de “grupos células” e de “grupos familiares” por outros, essas reuniões são normalmente conduzidas em lares com o propósito de trazer edificação para os crentes e evangelização aos visitantes. O número de participantes se reduz, geralmente, a menos de vinte pessoas e a liturgia é bem simples, consistindo de leituras bíblicas, cânticos e orações, um estudo bíblico e momentos de confraternização. Há que se distinguir este uso estratégico das reuniões nos lares do movimento que se denomina “igreja em célula”, pois aquele possui uma eclesiologia toda distinta, onde cada célula é uma igreja autônoma com celebração da ceia, batismos e disciplina sendo realizados na própria célula e, nem sempre, por pessoas preparadas e ordenadas para tal. Os “pequenos grupos” ou “grupos células”, por outro lado, são apenas meios estratégicos de facilitar o convívio e motivar os relacionamentos dos membros de uma igreja local. Seus líderes são apontados por um conselho de igreja, mas nunca autorizados a conceder à comunidade doméstica o status ou função de igreja.
O uso de comunidades domésticas na evangelização, como já foi visto, teve início com a propagação da fé cristã na Palestina e redondezas. A princípio, os cristãos se reuniam no templo e nos lares concomitantemente (At 2.42-3.1; 5.42). Contudo, a perseguição dos judeus fez com que as reuniões no templo se tornassem impraticáveis e os cristãos passaram a se reunir em casas de pessoas piedosas (At 12.12). Semelhantemente, o apóstolo Paulo em suas viagens, sempre procurava uma sinagoga para pregar aos judeus, mas quando sua pregação era rejeitada ele voltava-se para as casas dos gentios (At 17.1-9; 18.5-7). As comunidades domésticas eram os lugares onde os cristãos se reuniam a fim de se evitar a perseguição tanto de judeus quanto de gentios e ali eles recebiam a edificação e consolo dos apóstolos (At 16.15, 40). Em seu discurso de despedida, Paulo disse aos presbíteros de Éfeso que ele ensinava o que lhes era proveitoso tanto publicamente como “de casa em casa” (At 20.20). Mais tarde, ao escrever a carta aos romanos, o apóstolo identifica ao menos três comunidades domésticas que constituíam a igreja naquela cidade (Rm 16.5, 11 e 14). O interessante é que ao escrever aquela carta, Paulo estava na casa de um certo Gaio que também hospedava uma igreja em sua residência (Rm 16.23).
Seria um erro e exagero tomar estas referências bíblicas sobre as reuniões nos lares e defender que a igreja verdadeira é aquela que se reúne fora do templo. Historicamente, logo após o período de intensa perseguição a igreja passou a ter um local comum para suas reuniões e cultos, pois não havia mais necessidade de se esconder. Somente na Idade Média, com o surgimento dos movimentos de fraternidade como os Valdenses (Pedro Valdo) e os franciscanos (Francisco de Assis) é que as comunidades domésticas voltaram a ser usado com maior intensidade no cristianismo. Após a Reforma Protestante essas reuniões também foram muito úteis, especialmente aos huguenotes (calvinistas franceses). A prática de se reunir em comunidades domésticas ainda se estendeu à Morávia, quando os irmãos morávios se reuniam para orações nos lares. Na Inglaterra, os metodistas faziam o mesmo e na Alemanha os pietistas costumavam se reunir em casas para estudos das Escrituras e orações. Mais recentemente as comunidades domésticas têm sido grandemente úteis à “igreja do silêncio” na Rússia e na China comunista. Em todas estas ocasiões, parece que o uso dos pequenos grupos foi motivado pelas circunstâncias difíceis em que a igreja vivia, o que lhes proibia adorar a Deus em locais públicos.
Contudo, nos últimos anos esta mesma estratégia de reuniões nos lares tem sido especialmente utilizada nos contextos urbanos, uma vez que nem sempre é possível aos cristãos se reunirem, com facilidades, durante a semana, para o estudo bíblico, orações e confraternizações. Há considerável literatura relatando esta prática nas grandes cidades da Coréia, Tailândia, Costa do Marfim, Argentina e Colômbia. O fato é que a estrutura celular das comunidades domésticas parece oferecer, nas grandes cidades, aquilo que o complexo urbano dificulta: entrosamento e proximidade. No Brasil, várias igrejas estão adotando esta prática como alternativa para os estudos bíblicos semanais. Ao invés de manter o estudo bíblico somente no templo, a igreja local é espalhada em três ou quatro lugares da cidade, cada um estudando o mesmo assunto que é administrado no templo. O material de estudo pode ser um livro da Bíblia (ex. O evangelho de Marcos, Romanos, Filipenses, etc.), um tópico de interesse da igreja local ou um assunto abordado por um livro cristão. Os resultados são uma maior participação e entrosamento dos membros da igreja local, além de uma freqüência acentuada de visitantes.
As vantagens oferecidas pelas reuniões em comunidades domésticas no contexto urbano podem variar de acordo com as características da cidade e da igreja local. Teoricamente, porém, estas reuniões de pequenos grupos são benéficas por se desenvolverem em um ambiente familiar e possibilitar uma comunhão cristã onde os participantes se conheçam melhor e interajam com mais liberdade. Estes ambientes ainda proporcionam relacionamentos informais, o que pode ajudar alguns a expressar dúvidas sem o constrangimento que teriam em reuniões mais formais. Em terceiro lugar, os pequenos grupos ainda podem ser benéficos no treinamento de algumas pessoas uma vez que cada um terá uma função a desempenhar no bom andamento das reuniões. Ao invés de ser apenas um expectador, como ocorre com muitos na igreja local, o membro de um pequeno grupo será um participante ativo, pois cada um deve desempenhar uma tarefa. Outra vantagem das comunidades domésticas é o fato de que elas podem servir de excelentes pontes para evangelização. Algumas pessoas não crentes têm muitas dificuldades de freqüentar uma igreja local, pois isto, para elas, significa quebrar vários paradigmas tradicionais. Uma visita na residência de um amigo, porém, pode não parecer tão ameaçador e muitos preferem esta opção à anterior. Dessa forma, esses visitantes amigos podem ouvir o evangelho e observar como os cristãos se portam em ambientes familiares. Por último, as reuniões em pequenos grupos acabam por estimular a multiplicação. Na medida em que o grupo aumenta, ele pode se multiplicar em novas células e com isto o crescimento numérico acompanhará o crescimento espiritual. Outras vantagens podem surgir em diferentes contextos e experiências da aplicação desta estratégia.
Resumindo, seria errôneo transformar as referências bíblicas sobre as reuniões em comunidades domésticas, bem como os exemplos históricos, em uma norma a ser seguida e praticada em todo lugar. Todavia, uma consideração das vantagens envolvidas nesta estratégia, especialmente nos contextos urbanos, certamente é um excelente indicativo para prática evangelística da igreja contemporânea.
Autor: Rev Valdeci Santos
Fonte: Site ipb.org.br