A Doutrina da Eleição

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Rev. Franklin Ferreira


HISTÓRICA

Para Lutero, depois da queda o homem perdeu o seu livre-arbítrio, no tocante à salvação, e tornou-se totalmente corrompido pelo pecado e escravo de Satanás. Segundo o reformador, embora nosso destino, em certo sentido, seja determinado por Deus, não somos compelidos a pecar. Pecamos espontânea e voluntariamente. Continuamos querendo e desejando fazer o mal, a despeito do fato de que em nossas próprias forças não podemos fazer nada para alterar essa condição. Eis a tragédia da existência humana sem a graça: estamos tão curvados sobre nós mesmos, que, pensando estar livres, entregamo-nos exatamente àquelas coisas que apenas aumentam a nossa escravidão. O propósito da graça é libertar-nos da ilusão da liberdade, que é na verdade escravidão, e guiar-nos para a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”, somente quando a vontade recebeu a graça é que o poder de decisão se torna verdadeiramente livre em todos os aspectos concernentes à salvação. O eco de resposta à escravidão da vontade é a liberdade do cristão. Visto que, fora da graça, o homem não possui nem uma razão sã, nem uma vontade boa, somente a eleição eterna e a predestinação podem preparar o homem para a graça.

Lutero não se esquivou de ensinar uma predestinação absoluta e dupla. Ele até restringiu o alcance da expiação de Cristo aos eleitos. Embora Lutero nunca tenha suavizado a sua doutrina da predestinação (como o fizeram posteriormente os luteranos), ele tentou estabelecer o mistério no contexto da eternidade. Há, segundo Lutero, três luzes, a luz da natureza, a luz da graça e a luz da glória. Pela luz da graça, tornamo-nos capazes de compreender muitos problemas que pareciam insolúveis pela luz da natureza. Mas a luz da graça é incapaz de nos fazer compreender os retos julgamentos de Deus, os quais só compreenderemos à luz da glória. A resposta ao enigma da predestinação encontra-se no caráter oculto de Deus. No final, quando tivermos prosseguido através destas “luzes”, o “Deus Escondido” se mostrará um só com o Deus que é revelado em Jesus Cristo e proclamado no Evangelho. Enquanto isso não ocorrer, segundo Lutero, podemos apenas acreditar nisso. A predestinação assim como a justificação é também Sola Fide.

A palavra “predestinação” foi usada pela primeira vez por Calvino somente nas Institutas de 1539. Calvino não organizou seu programa teológico em torno desta idéia. Calvino assemelha seu ensino acerca da predestinação basicamente ao de Lutero. Calvino fez um movimento realmente original em sua afirmação da doutrina dentro de seu esquema teológico. Comumente a predestinação é tratada no contexto da doutrina de Deus, como uma aplicação especial da doutrina da providência. Entretanto, Calvino, em sua edição definitiva das Institutas (1559), separou as duas, mantendo a providência sob a doutrina de Deus Pai, no primeiro volume, e colocando a predestinação sob o título geral da obra do Espírito Santo, quase no final do terceiro volume. Assim como a providência, em certo sentido, completa a doutrina do Deus Criador, da mesma forma, a predestinação é o clímax do Deus Redentor. [1]

A doutrina da predestinação, como exposta por Calvino, pode ser resumida em três palavras: absoluta, particular e dupla. A predestinação é absoluta, no sentido de que não está condicionada a nenhuma contingência finita, mas baseia-se somente na vontade imutável de Deus. Em segundo lugar a doutrina da predestinação é particular no sentido de que pertence a indivíduos e não a grupo de pessoas. A eleição da graça aplica-se a cada pessoa individualmente. E, em terceiro lugar, a predestinação é dupla, isto é, Deus, para o louvor da sua misericórdia, ordenou alguns indivíduos para a vida eterna, e para o louvor da sua justiça enviou outros para a condenação eterna. [2] E, neste caso, os réprobos que foram escolhidos para condenação eterna pelo decreto de Deus trazem sobre si mesmo a justa destruição a que estão destinados. Se perguntado sobre a razão pela qual Deus escolheu este ou rejeitou aquele Calvino replicava que quem fez a indagação estava procurando algo maior e mais elevado do que a vontade de Deus, que não poderia ser encontrado.

Os reformadores entenderam essa questão como o coração do debate entre a igreja evangélica e a Igreja Católica. Eles rejeitaram o ensino da Roma sobre livre-arbítrio porque entenderam que tal ensino solapa a essência do evangelho – a doutrina de justificação pela graça somente. Para eles, livre-arbítrio significava salvação através de boas obras. Quando o arminianismo surgiu, em meados do século 17, os herdeiros dos reformadores entenderam isso como uma volta para Roma. [3]


SISTEMÁTICA


1. A afirmação bíblica da doutrina da eleição: [4] A doutrina da eleição não é uma filosofia cega, mas é afirmada pela Palavra de Deus, sendo construída, sustentada e revelada por ela. Deus elegeu indivíduos para serem seus filho e herdeiros da glória eterna (Mt 22.14; Rm 11.5; 1Co 1.27-28; Ef 1.4; 1Ts 1.4; 1Pe 1.2; 2Pe 1.10). A eleição é o ato eterno de Deus pelo qual Ele, em sua soberana vontade, e sem levar em contra nenhum mérito humano previsto, escolhe um certo número de pessoas para receberem a livre graça e a salvação eterna. A eleição é o propósito de Deus de salvar certos membros da raça humana em Jesus Cristo e por meio dele. [5]

† Uma expressão da vontade livre de Deus. O amor eletivo de Deus precede ao envio de seu filho (Jo 3.16; Rm 5.8; 2Tm 1.9; 1Jo 4.9). Ao dizer que o decreto da eleição divina se origina na vontade de Deus, exclui-se também a idéia de que ela é determinada por alguma coisa existente no homem, como a fé ou as boas obras previstas (Rm 9.11; 2Tm 1.9). “Que ninguém conclua que os eleitos o são em virtude de serem eles merecedores, ou porque de alguma forma conquistaram para si o favor divino, ou ainda porque possuíam alguma semente de dignidade pela qual Deus pôde ser movido a agir. A idéia simples, que devemos levar em conta, é esta: o fato de sermos contados entre os eleitos independe tanto de nossa vontade quanto de nossos esforços – pois o apóstolo substituiu correr por esforço ou diligência. Ao contrário, deve ser atribuído totalmente à benevolência divina, a qual, por si mesma, recebe graciosamente aqueles que nada empreendem, nem se esforçam, nem mesmo tentam”. [6]

† É imutável, e, portanto, torna segura e certa a salvação dos eleitos. Deus executa o decreto da eleição com a sua própria eficiência, pela obra salvadora que realiza em Jesus Cristo (Rm 8.29-30; 11:29, 2Tm 2:19).

† É desde a eternidade. Esta eleição jamais deve ser identificada com alguma seleção temporal, seja para o gozo da graça especial nesta vida, seja para privilégios e serviços de responsabilidade, seja para herança da glória pro vir, mas, antes, deve ser considerada eterna (Rm 8.29-30, Ef 1.4-5).

† É incondicional. A eleição não depende de modo algum da fé ou boas obras previstas, mas exclusivamente da livre e soberana graça de Deus, que é também a origem da fé e das boas obras (Rm 9.11, At 13.48, 2Tm 1.9, 1Pe 1.2). Como diz Booth: “Se as pessoas foram eleitas porque Deus sabia que elas iam crer, por que então precisavam ser eleitas? Os que têm fé hão de ser salvos, de qualquer modo! Se a fé já existe, a eleição é desnecessária”. [7]

† É irresistível. Não significa que o homem não possa se opor à sua execução até certo ponto, mas significa sim, que a sua oposição não prevalecerá. Tampouco significa que Deus na execução do seu propósito subjuga de tal modo a vontade humana que seja incoerente com a liberdade humana. Significa porém, que Deus pode exercer tal influência sobre o ser humano que o leva a querer o que Deus quer (Sl 110:3, Fp 2:13).


2. A exposição da doutrina da eleição: [8] A igreja consiste dos escolhidos de Deus. Certamente nem todos que estão na igreja visível foram escolhidos por Deus para a vida eterna. Há alguns dentro da igreja que são cristãos nominais e que nunca serão crentes. Estes não estão entre o número dos escolhidos. Porém todos os verdadeiros membros da igreja de Cristo pertencem aos escolhidos.

É possível que não haja outro ensinamento da Palavra de Deus tão impopular como a eleição. Inclusive, alguns que amam a Palavra de Deus estão muito próximos de detestá-la. Isto é difícil de entender. Não só se ensina inequivocamente a eleição na Escritura senão que esta doutrina declara enfaticamente o amor gratuito, livre, e incondicional, de Deus, pelos seus. Assim, pois, o fato de que a igreja consiste dos escolhidos de Deus torna mais refulgente sua glória.

† Eleitos por Deus Pai. Como o arquiteto de sua igreja, Deus Pai a planejou desde a eternidade e especificou precisamente quais pessoas seriam as que a comporiam. Ele a escolheu dentre toda raça humana para esse fim. Deus falou acerca de seu povo no Antigo Testamento como “meu servo Jacó” e “Israel meu escolhido” (Is 45.4). Na saudação de sua carta aos efésios, Paulo se alegrou, dizendo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade” (Ef 1.3-5). E Pedro se dirigiu àqueles a quem escreveu sua carta como “eleitos, segundo a presciência de Deus Pai” (1Pe 1.2). “Perguntando-se quais são os princípios que subjazem a escolha feita por Deus, a única resposta positiva que se pode dar é que Ele concede Seu favor aos homens, e os vincula a Si mesmo, unicamente com base em Sua própria decisão livre e no Seu amor que independe de quaisquer circunstâncias temporais.” [9]

Há quem diga que Deus elegeu a todos os homens para que sejam membros do corpo de Cristo. Nada poderia estar mais longe do testemunho bíblico. A própria palavra “eleição” significa a escolha de alguns dentre um número maior, e escolher todos de um certo número simplesmente não é escolher. Se Deus elegesse todos os homens para que sejam membros de sua igreja não teria elegido nenhum. É interessante que alguns que sustentam que Deus elegeu todos os homens chegam exatamente a essa conclusão: dizem que a única razão por que uma pessoa chega a ser membro da igreja de Cristo é porque por sua própria vontade escolhe unir-se à igreja. Em outras palavras, alguém chega a ser membro da igreja, não porque Deus o escolhe, mas porque a própria pessoa decide fazê-lo. Assim a eleição é do homem, não de Deus. É difícil imaginar uma contradição mais flagrante da Escritura. [10]

A Escritura fala, com freqüência, do amor de Deus por seu povo. Por exemplo: “Acaso pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta viesse a se esquecer dele, eu, todavia, não me esquecerei de ti. Eis que nas palmas das minhas mãos te gravei; os teus muros estão continuamente perante mim” (Is 49.15,16). Esta linguagem é, ao mesmo tempo, forte e terna. Todavia, a revelação do amor de Deus por sua igreja alcança seu cume na compra dessa igreja pelo Filho de Deus com seu próprio sangue. Olhando para o Cristo crucificado, todo membro de sua igreja sussurra: “O qual me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2.20). Em uníssono a igreja lê: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (Rm 5.8-10).

† Comprados por Deus Filho. Deus, o Filho, comprou os escolhidos, aqueles a quem o Pai havia designado como membros de sua igreja. [11] Paulo relembrou os anciãos da igreja de Éfeso de seu dever de pastorear a igreja de Deus, a qual, disse, “ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28). Fora de Cristo não há eleição e, por isso mesmo, não pode haver salvação. “O Escolhido de Deus é o agente divino da escolha”. [12]

Alguns dos primeiros pais da igreja sustentaram a opinião que Cristo pagou a Satanás o preço com o qual ele comprou os escolhidos. É uma interpretação de todo errônea. Se Cristo tivesse feito isso, teria constituído um reconhecimento de que Satanás havia sido antes o dono legítimo dos pecadores escolhidos. É evidente que Satanás nunca teve tal poder. Quando o homem pecou, Deus, como Juiz, sentenciou a raça humana à prisão. Satanás foi, por assim dizer, carcereiro da prisão. Cristo veio para dar sua vida em resgate por certos prisioneiros. Dito em uma maneira mais clara, Ele apresentou o resgate não ao carcereiro, mas ao Juiz. O Juiz aceitou o resgate e ordenou a liberdade daqueles prisioneiros. Assim os prisioneiros são libertados do poder das trevas e transportados para o reino de seu amado Filho (Cl 1.13). [13]

Em nossos dias é muito comum outra falsa interpretação da expiação. Diz-se que Cristo comprou não só aos escolhidos, mas a todos os homens com seu sangue e que, havendo feito isso, Ele deixou que cada indivíduo escolhesse aceitar ou não o benefício salvífico de sua morte. Essa interpretação fracassa completamente em compreender o amor do Salvador para com os seus. Sem dúvida, a morte de Cristo é suficiente para a salvação de todos os homens. Contudo, há de se afirmar enfaticamente que nenhum dos que Cristo comprou com seu sangue permanecerá sob o domínio do diabo. Seu amor assegura que todos aqueles que Ele comprou chegarão a ser crentes nEle e membros de sua igreja. Ele fará que tal coisa suceda, não por uma compulsão externa, porém pela influência graciosa de seu Espírito Santo. “O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.11). E Ele verá que até a última ovelha pela qual deu sua vida será trazida ao rebanho. Calvino conclui: “A fonte donde nos advêm todas as bênçãos que Deus nos concede consiste em que ele nos escolheu em Cristo”. [14] Herman Bavinck também diz:

“Os crentes estão em Cristo da mesma forma que todas as coisas, em virtude da criação e da providência, estão em Deus. Eles vivem em Cristo como os peixes vivem na água, os pássaros vivem nos ares, o homem em sua vocação, o erudito em seu estudo. Juntamente com Cristo os crentes foram crucificados, mortos e sepultados, e juntamente com Ele eles ressuscitaram e estão assentados à mão direita de Deus e glorificados (Rm 6.4ss.; Gl 2.20; 6.14; Ef 2.6; Cl 2.12,20; 3.3). Os crentes assumem a forma de Cristo e mostram em seu corpo tanto o sofrimento quanto a vida de Cristo e são aperfeiçoados (completados) nele. Em resumo, Cristo é tudo em todos (Rm 13.14; 2Co 4.11; Gl 4.19; Cl 1.24; 2.10; 3.11).” [15]


† Reunidos por Deus Espírito Santo: Os escolhidos, aqueles que foram designados desde a eternidade por Deus, o Pai, e comprados por Deus, o Filho, quando este morreu na cruz do Calvário, são, no curso da história, reunidos como igreja cristã pelo Deus Espírito Santo. O Espírito realiza isso quando concede aos escolhidos a graça da regeneração. Por natureza eles estão mortos em seus delitos e pecados, mas o Espírito de Deus lhes dá vida (Ef 2.1). É uma conclusão segura que, em conseqüência, crerão no Senhor Jesus Cristo. [16] A noção ampliada difundida nos meios cristãos é que todos os seres humanos, incluindo os não-regenerados, são capazes, por sua própria vontade, de receber a Cristo como Salvador e ao fazer isso unir-se à igreja de Cristo. Diz-se que Deus tem deixado essa parte da salvação para o homem. E declara-se que o novo nascimento é uma conseqüência, não um requisito, do ato de fé do homem.

Este é um dos erros mais correntes, para não dizer um dos mais sérios do evangelicalismo atual. Por fazer do homem, em última instância, seu próprio salvador, este erro distorce uma das doutrinas centrais da Palavra de Deus: a salvação pela graça de Deus. A Escritura ensina inequivocamente que ninguém pode vir a Cristo em fé se o Pai não lhe trouxer (Jo 6.44); que antes que a fé chegue a ser um ato do homem, é um dom de Deus (Fp 1.29); e que “ninguém pode dizer “Senhor Jesus!” senão pelo Espírito Santo” (1Co 12.3). A Escritura ensina com a mesma clareza que é Deus quem reúne seus escolhidos na igreja. Foi Deus o Espírito Santo quem, ao aplicar o sermão de Pedro nos corações, reuniu três mil homens e mulheres na igreja no dia de Pentecostes. E foi “o Senhor” quem posteriormente “acrescentava diariamente à igreja os que haviam de ser salvos” (At 2.47). Usando uma expressão de Calvino, podemos dizer que a “eleição é mãe da fé”. [17]

Que gloriosa manifestação do amor de Deus é a reunião dos escolhidos na igreja! Se Deus tivesse escolhido certos indivíduos para constituir o corpo de seu Filho, mas tivesse feito com que a realização dessa seleção dependesse do consentimento deles, nenhum deles seria salvo. Se, além de escolhê-los, Deus os comprasse com seu sangue para que fossem membros de sua igreja, mas tivesse feito com que o cumprimento dessa transação dependesse da aceitação de suas condições, todos estariam perdidos. Tão grande é o amor de Deus pelos seus que Ele realiza sua salvação exclusivamente. Não só os escolheu desde a fundação do mundo e os comprou na cruz, como também é Ele quem torna válidas essa eleição e essa compra por meio da operação de seu Espírito dentro deles. O Espírito Santo os traz da morte para a vida, concedendo-lhes a fé salvadora e assim os torna membros de Cristo. Desde o princípio até o fim, sua salvação depende exclusivamente da graça soberana e do amor infinito de Deus. A igreja consiste daqueles que Deus ama imensamente.

† Eleitos para servir. Agora é necessário chamar a atenção para um aspecto da eleição que às vezes é descuidado por aqueles que confessam esta doutrina. Indubitavelmente a eleição é para a salvação (2Tss 2.13), mas a Escritura ensina de uma forma não menos enfática que é também para serviço. A salvação e o serviço são inseparáveis. A eleição é para servir.

Os membros da igreja de Cristo são feitura de Deus, “criados em Cristo Jesus para as boas obras” (Ef 2.10). Porque foram comprados, estão sob a solene obrigação de glorificar a Deus em seus corpos e em seus espíritos, que são de Deus (1Co 6.20). Cristo se entregou por eles para redimi-los de toda iniqüidade e purificar para Si mesmo um povo especial, zeloso de boas obras (Tt 2.14). Devemos dizer com ênfase – Deus Pai escolheu a sua igreja em seu amor soberano, o Filho a comprou com seu precioso sangue, e o Espírito Santo veio para morar nela com o fim de que testificasse. É raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para que anuncie as virtudes daquele que a chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1Pe 2.9). A igreja consiste daqueles que amam e servem ao Deus trino, porque Ele os amou primeiro.


APOLOGÉTICA

O calvinismo e o arminianismo são sistemas mutuamente exclusivos. Cada sistema é mais do que os cinco pontos: Eles são cosmovisões que têm implicações para cada área da vida. Não é possível assumir uma posição no meio das duas sem aceitar contradições lógicas. Muitos batistas são afirmam os quatro primeiros pontos porque ainda querem acreditar na idéia da segurança eterna do crente, ou seja, uma vez salvo, sempre salvo, porque a Bíblia ensina isso claramente. Entretanto, se é tão importante acreditar que a dignidade humana depende do ser humano ter livre arbítrio, porque nós a temos antes da salvação, mas não depois? Realmente, não há resposta para este argumento! É racional acreditar que Deus nos rouba de um elemento da nossa humanidade essencial depois de sermos salvos? Mas se ainda temos o livre-arbítrio depois da salvação, não existe razão nenhuma para impedir que o crente rejeite a Cristo e perca a salvação. O problema fica pior ainda porque se existe o livre-arbítrio, segundo a definição arminiana, então, depois de dez milhões de anos no céu, qualquer crente pode pecar e ser lançado no inferno. Ou será que Deus vai permitir tal pecador fique no céu?

Os elementos mutuamente exclusivos entre os dois sistemas brotam dos seus pressupostos incompatíveis: Para os arminianos, o livre arbítrio é uma causa sem causa, ou seja, o poder absoluto de fazer escolhas contrárias e indeterminadas. Para o calvinismo, o livre-arbítrio é a capacidade de a pessoa fazer escolhas sem coerção de maneira consistente com a sua natureza e os seus desejos. A vontade é condicionada e determinada por uma multidão de fatores psicológicos, físicos, e espirituais todos os quais estão, no fim das contas, ordenados não por acaso, mas pelos propósitos soberanos de Deus.

Apresenta-se, então, a importante pergunta: Por que Deus designou certas pessoas dentre as demais para que sejam membros de sua igreja? Têm-se dado duas respostas contraditórias. O arminianismo ensina que Deus escolheu certos indivíduos porque sabia de antemão que eles creriam em Cristo. A teologia reformada insiste que a única razão da eleição de Deus era o divino amor soberano. Isto é, desde a eternidade, Deus viu os objetos de sua eleição em Cristo, seu Escolhido. Segundo o arminianismo, a base para a eleição de Deus reside no homem; segundo o calvinismo, reside em Deus. Dito de outro modo, o arminianismo sustenta que a fé é a base para a eleição, enquanto que a fé reformada sustenta que a fé é o fruto da eleição e também sua prova.

João 3:16 diz que “todo aquele que nele crê, não pereça”. O arminiano interpreta isso dizendo que qualquer pessoa, por sua própria vontade, pode crer em Jesus. O calvinista responde que a construção grega não exige a noção de que qualquer pessoa tenha o poder de crer no evangelho. O versículo diz apenas que existe uma classe de pessoas, aqueles que nele crêem, e que nenhum deles perecerá. O verso não explica como essas pessoas conseguiram fazer parte da classe daqueles que crêem.

Os arminianos respondem que a eleição pode ter em vista indivíduos específicos, mas isso é porque Deus pode prever quem aceitaria o evangelho por seu livre arbítrio. Os arminianos dizem que Romanos 8.29 e 1Pedro 1.2 faz com que a predestinação esteja fundamentada na presciência. De fato estes versículos colocam a presciência logicamente antes da predestinação. Não obstante, segundo os calvinistas, eles não declaram que a coisa pré-conhecida é a fé das pessoas. Realmente, essas passagens não definem presciência (proginosko). Proginosko é utilizado em Romanos 11.2 com o sentido da palavra hebraica yada, que significa, “conhecer” e tem conotação de um relacionamento pessoal. Deus conhece a Israel, ou seja, Ele tem um relacionamento pessoal com Israel (Amós 3.2).

O verbo proginosko aparece em 1Pedro 1.20 em relação à predestinação da expiação de Cristo. Várias traduções da Bíblia usam palavras tais como “escolhido” e “predeterminado” neste versículo. Portanto, a palavra proginosko em Romanos 8 e 1Pedro 1 pode ser entendida no sentido de ter um relacionamento antes. Os calvinistas asseveram que isso é uma indicação do amor de Deus pelos eleitos pelo qual Ele os escolheu.

Vários versículos são utilizados pelos arminianos para argumentar que a fé em Cristo é igualmente possível para todos por causa do livre arbítrio. A mesma coisa pode ser dita de Atos 10.43. Outro verso utilizado pelos arminianos é Romanos 10.11-13. O verso 13 diz que todos, ou seja, qualquer pessoa que invoca o nome do Senhor será salva. Segundo os arminianos, a palavra “todo” é universal e mostra a possibilidade de que qualquer pessoa possa crer em Jesus. Por outro lado, os calvinistas notam que, no sistema deles, o versículo não é negado. Somente os eleitos invocarão o nome do Senhor com sinceridade. Os outros jamais desejarão arrepender e invocar o nome de Cristo. O verso não apóia o arminianismo porque ele não diz porque algumas pessoas crêem e outras não. Os calvinistas acreditam que a Bíblia ensina, sem ambigüidade, a eleição de indivíduos para serem salvos.

Os calvinistas acreditam que a Bíblia ensina, sem ambigüidade, a eleição de indivíduos para serem salvos. A fé não é uma obra humana, mas um dom de Deus. Ela é dada às pessoas que Deus escolheu anteriormente. Atos 13:48 diz que a causa da fé (a palavra “crer”, pisteuo é a forma verbal do substantivo “fé”, pistes) foi o fato de que aqueles que creram foram ordenados a crer. Efésios 2:8 ensina que a fé é um dom de Deus. A palavra “fé” pistes (fé) é feminina, mas mesmo assim, ela é antecedente da palavra neutra touto (isto) porque um substantivo feminino e abstrato pode ser ligado com um pronome neutro segundo das regras da gramática grega [18]. Se a fé é um dom de Deus, logo, o pecador só tem fé porque Deus o escolheu.

É importante que seja entendido que o calvinista não nega que quem quiser pode receber a Jesus. Muito pelo contrário, ele compartilha com seu irmão arminiano a confiança de que quem quiser pode vir ao Senhor Jesus e que Jesus de forma alguma rejeitará aquele que vem. O que o calvinista está dizendo e que a pessoa que não recebe a Jesus não vem exatamente porque ela não quer. E por causa da sua natureza pecaminosa ela nunca vai querer e nem pode querer receber a Jesus a não ser que ele receba um novo coração primeiro. Por isso, segundo os calvinistas, foi necessária a escolha primeiro dos eleitos que depois receberiam gratuitamente o dom de fé.

Muitos cristãos hoje mantêm algum tipo de doutrina da eleição. De modo geral baseiam-se em Romanos 8.29: “Porque os que dantes conheceu também os predestinou”. O argumento se desenvolve aproximadamente da seguinte maneira: Deus previu aqueles que aceitariam a Cristo, elegendo-os portanto para a vida eterna. Contra esse ponto de vista deve ser notado que:

 A presciência de Deus refere-se a um povo e não a qualquer ação desenvolvida pelo povo. A Bíblia diz: “… os que dantes conheceu”, etc. De novo Deus fala através de Amós: “De todas as famílias da terra a vós somente conheci”. Isto é, independente de qualquer ação, boa ou má, Deus os “conheceu” no sentido que os amou e escolheu para serem dEle. É assim que predestinou a Seus eleitos.

 Não adianta dizer que Deus nos elegeu por ver algo que faríamos – isto é, “aceitar” a Cristo, mas somos escolhidos para que possamos “aceitá-lo”. “Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

 Também não resolverá dizer que Deus previu aqueles que acreditariam. Atos 13.48 torna esse ponto completamente claro: “e creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna”. Eleição não resulta de acreditarmos, mas nossa crença resulta de sermos eleitos – “ordenados para a vida eterna”.

 Dizer que exercitamos fé ao aceitar a Cristo e que Deus previu essa fé e, portanto, nos elegeu, somente nos leva mais um passo para traz; pois onde encontramos a fé para exercitar? As Escrituras fornecem a resposta: “É dádiva de Deus, não de nós mesmos”. [19]

 Uma outra objeção diz que na eleição, Deus é parcial e faz acepção de pessoas. [20] Alguém que “faz acepção de pessoas” é alguém que, atuando como juiz, nega a uns o que justamente lhes pertence e dá a outros o que não é justamente deles – isto é, é alguém governado pelo prejuízo e por motivos sinistros, e não pela justiça e pela lei. As Escrituras negam que Deus faça acepção de pessoas neste sentido; e se a doutrina da predestinação apresenta Deus atuando desse modo, teremos que admitir que Deus é injusto.

As Escrituras ensinam que Deus não faz acepção de pessoas, porque Ele não escolhe um e rejeita outro com base em circunstancias externas como raça, nacionalidade, riquezas, poder, nobreza, etc. Pedro diz que Deus não faz acepção já que Ele não faz distinção entre judeus e gentios. Sua conclusão após ter sido enviado para pregar ao centurião romano, Cornélio, foi, “reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (At 10.34-35). Através de toda sua história os judeus creram que como povo eram objetos exclusivos do favor de Deus. Uma leitura cuidadosa de Atos 10.1-11.18 revelará quão revolucionária era a idéia de que o evangelho haveria de ser pregado aos gentios também.

Paulo diz, “glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem; ao judeu primeiro, também ao grego. Porque para com Deus não há acepção de pessoas” (Rm 2.10-11). E, novamente, “já não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há varão nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Logo acrescenta que não são os judeus externamente, mas aqueles que são de Cristo os que, no sentido mais profundo, pertencem a “linhagem de Abraão”, e “herdeiros segunda a promessa” (Gl 3.28, 29). Em Efésios 6.5-9 ordena os servos e senhores a se tratarem com justiça; por que Deus, que é Senhor de ambos, não faz acepção de pessoas; e em Colossenses 3.25 inclui igualmente as relações entre pais e filhos e entre esposas e esposos. Tiago diz que Deus não faz acepção de pessoas porque não faz distinção entre rico e pobre, nem entre aqueles que usam vestiduras finas e os que se vestem com simplicidade (Tg 2.1-9). O termo “pessoa” nestes versos significa não o homem interior, ou a alma, mas a aparência externa, que, com tanta freqüência, exerce influencia em nossos julgamentos. Portanto, quando as Escrituras afirmam que Deus não faz acepção de pessoas, isto não significa que Deus trata a todos por igual, senão que a razão pela qual Ele salva um e rejeita outro não é porque um seja judeu e o outro gentio, ou porque um seja rico e o outro pobre.

Se todas as pessoas fossem inocentes, Deus seria injusto se as tratasse de maneira desigual, salvando umas e condenando as demais. O fato, no entanto, é que todos são pecadores e nada merecem de Deus. Deus é misericordioso para com aqueles a quem salva, sem ser injusto para com aqueles a quem condena, visto que podia ter condenado a todos sem ser injusto. Quando a Bíblia diz que Deus não faz acepção de pessoas, não quer dizer que Ele não distingue pessoas, dando a uns, o que nega a outros. Que todas as pessoas não têm os mesmos dons e as mesmas oportunidades, é um fato inegável. Existem muitos povos que nunca tiveram a oportunidade de ouvir o Evangelho, e nações inteiras, durante séculos, foram privadas desse privilégio.

Quando a Bíblia diz que Deus não faz acepção de pessoas quer dizer que ele não faz distinção por motivo de raça, riqueza, condição social, e também que Ele recompensará cada um de acordo com as suas obras (At 10.34; Rm 2.11; Tg 2.9; 1Pd 1.17). Deus não faz nenhuma diferença entre judeus e gentios – julgará a todos em conformidade com as obras de cada um, visto como não faz acepção de pessoas. Mas nossa salvação não é algo devido aos nossos méritos; procede da graça divina. A este respeito Deus pode dizer o que o proprietário, respondendo, disse: “Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu, e vai-te; pois quero dar a este último tanto quanto a ti. Porventura não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus olhos porque os meus são bons?” (Mt 20.13-15).

Deus não pode ser acusado de parcialidade em sua escolha graciosa, porque isto só é ocorre quando uma parte tem o que exigir de outra. Se Deus fosse obrigado a perdoar e salvar o mundo inteiro, seria parcial se salvasse apenas a alguns e não todos. Parcialidade é injustiça. A afirmativa de que Deus é obrigado a oferecer perdão de pecados, mediante Cristo, a todo o mundo, não tem apoio da Escritura, visto que transforma a graça em dívida, envolvendo o absurdo de que, se o juiz não oferece perdão ao criminoso, contra quem lavrou sentença condenatória, não o trata com eqüidade. [21]

Certamente, em vez de argumentarmos contra essas coisas, deveríamos estar praticando aquilo que o Espírito Santo, através do apóstolo Pedro, recomenda: “Procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição” (2Pe 1.10).


PRÁTICA

A discussão sobre a doutrina da eleição tem negligenciado com demasiada freqüência o fato de que a abordagem mais ampla da eleição por parte de Paulo é uma grande doxologia (Ef 1.1-14). Paulo não está diante de um auditório empenhado em argumentação lógica; ele se acha de joelhos, perdido em adoração reverente. Se formos sinceros, reconheceremos que uma das maiores objeções que temos contra a eleição é o fato dela retirar a base da salvação de nossas mãos, pois ela subentende que até nossa resposta a Deus é tornada possível pela sua graça. Nossa salvação é absolutamente gratuita. Perceber isto é ser libertado como nunca antes para adorar e louvar. Faríamos bem em seguir o conselho de Calvino: “Não busquemos nossos próprios interesses, mas antes aquilo que compraz ao Senhor e contribui para promover sua glória”. [22]

A nossa salvação é obra exclusiva e total de Deus. Todos nós, sem exceção, somos inteiramente dependentes da graça de Deus; por isso, não há lugar para vanglória e arrogância, e sim, humildade. A fé que é o meio pelo qual recebemos a salvação, é um dom da graça de Deus. (Ef 2.8). Spurgeon diz: “Desconheço qualquer outra coisa que nos possa humilhar tão profundamente quanto a doutrina bíblica da eleição (…). Aquele que se sente orgulhoso de sua eleição, é porque não é um dos eleitos do Senhor”. [23]

Em Romanos 8, Paulo aponta outra implicação, a absoluta segurança que a eleição confere ao filho de Deus em face de toda ameaça, seja ela moral (Rm 8.33), física (8.35) ou espiritual (8.38. cf. Jó 10.28) [24] . Calvino diz: “A despeito de toda a fraqueza da carne, os eleitos, não obstante, não correm esse risco, porque não estão firmados em sua própria capacidade, mas estão fundados em Deus”. [25]

Além da salvação e o serviço, propriamente ditos, a eleição tem, ainda como finalidade, a santidade de vida (Ef 1.4). A eleição é “para sermos santos”. Deste modo, também não tem sentido a objeção de que a certeza de salvação que a eleição produz leva à libertinagem. A vida que não se expressa em santidade é incompatível com a doutrina bíblica da eleição (cf. 2Pe 1.3-11). A evidência histórica de nações como a Holanda e a Escócia, onde a eleição tem sido um fator preponderante, moldando o caráter nacional, refuta a idéia de que esta convicção solape a motivação moral; muito pelo contrário. [27]

 A doutrina da soberania de Deus nos da uma base firme para o ministério de evangelização. Enquanto os arminianos asseveram que o evangelismo não faria sentido se o livre arbítrio do ser humano não fosse livre da predeterminação de Deus, os calvinistas observam que a história mostra o contrário. Os arminianos dizem que calvinismo mata missões, mas os os fundadores do movimento moderno de missões, como Willaim Carey e Adoniram Judson, eram calvinistas. De fato, os primeiros missionários protestantes foram enviados para o Brasil por João Calvino! [28]

A doutrina da soberania de Deus é um forte incentivo para a evangelização, porque ela garante que a pregação do evangelho nunca seja em vão. Deus chama os seus eleitos através da pregação da Palavra. “Deus quer que o Evangelho seja proclamado ao mundo todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos”. [29] Os grandes evangelistas George Whitefield, Jonathan Edwards e Charles Spurgeon ganharam milhares de almas para Cristo. Eles pregavam e defendiam as doutrinas da graça de Deus e a soberania de Deus na salvação. O fato de que a salvação depende da soberania de Deus, quer dizer que o evangelismo não depende em métodos e técnicas de marketing ou persuasão humana. O evangelista pode pregar em paz, estando descansado pelo fato de que a pregação fiel é a sua responsabilidade, e o resultado é responsabilidade a de Deus. Ela sempre cumprirá o seu alvo. Como bem observou R.B. Kuiper: “A eleição requer a evangelização. Todos os eleitos de Deus têm que ser salvos. Nenhum deles pode perecer. E o evangelho é o meio pelo qual Deus lhes comunica a fé salvadora. De fato, é o único meio que Deus emprega para esse fim”. [30]

O arminiano talvez não entenda porque ele deve continuar pregando se, no fim, é Deus que é responsável pela salvação. Se já é assim, então a pregação não tem significado. O arminiano é freqüentemente levado ao fervor elogiável na evangelização, exatamente porque ele leva a sério a responsabilidade humana. Ele acha que o calvinista pode ser tentado a desistir. Por outro lado, o calvinista não entende porque o arminiano continua orando pela salvação dos seus queridos. Se é verdade que Deus nunca interfere com o livre arbítrio do pecador, então pedindo que ele mude o coração da pessoa e a salve é fútil. Significa orar para Deus faz o que o próprio arminiano não admite que Deus faça. O calvinista acha que se o arminiano fosse consistente, ele ficaria de joelhos diante do pecador e pedir a ele em vez de Deus. O calvinista acredita que o arminiano pode enfrenta a tentação de depender de si mesmo e de seus métodos, em vez de Deus. O calvinista continua pregando, pois ele sabe que Deus sempre cumpre seu plano através de meios. E a pregação é um dos meios que Deus usa para salvar os seus eleitos.

A verdade é que o arminiano que leva soberania de Deus a séria, nunca deixará de depender no poder de Deus na evangelização. Também o calvinista que leva a responsabilidade do homem a sério nunca deixará de empregar todos os meios que são bíblicos para ganhar os perdidos. Os dois devem trabalhar juntos em humildade e respeito mútuo, sabendo que o desejo de ambos é a salvação das pessoas pela glória de Deus. A doutrina da soberania de Deus não deve ser ocasião para divisão, mas deve servir para relembrar a ambos os lados que estas doutrinas devem ser equilibradas. Para encerrar, devemos nos lembrar das palavras de Calvino:

“Se alguém assim se dirige ao povo: ‘Se não credes é porque Deus já os há predestinado à condenação’, esse não somente alimentaria a negligência como também a malícia. Se alguém também para com o tempo futuro estenda a asserção de que não hajam de crer os que ouvem, porquanto hão sido condenados, isto seria mais maldizer do que ensinar. (…) Como nós não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao número e companhia dos predestinados, devemos ter tal afeto, que desejemos que todos se salvem; e assim, procuraremos fazer a todos aqueles que encontrarmos, sejam participantes de nossa paz (…). Quanto a nós concerne, deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio, salutar e severa correção, para que não pereçam eles próprios, ou a outros não percam. A Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz àqueles a Quem preconheceu e predestinou”. [31]

Erickson, conclui: “A predestinação não anula o incentivo para a evangelização e as missões. Não sabemos quem são os eleitos e os não eleitos, portanto, precisamos continuar a divulgar a Palavra. Nossos esforços evangelísticos são os meios que Deus usa para levar a salvação aos eleitos, A ordenação de Deus para o fim também inclui a ordenação dos meios para atingir tal fim. O conhecimento de que as missões são o meio de Deus é uma forte motivação para o empenho e nos dá confiança de que será bem-sucedido”. [32]

A eleição tem seu reverso. Se Deus escolheu certo número de pecadores para a vida eterna, é óbvio que entregou outros a seu estado de perdição. Este aspecto da predestinação é conhecido como preterição, rejeição ou reprovação. Tem-se alegado que esta doutrina elimina o sincero e universal oferecimento do Evangelho. Se Deus decretou desde a eternidade que certos homens pereçam eternamente, dizem os oponentes, é inconcebível que Ele, dentro da história, convide sinceramente a todos, sem distinção, para a vida eterna.

Numa tentativa de refutar esse argumento, às vezes se faz a observação de que o pregador não tem meios para saber quem é eleito e quem não é, e que, portanto, ele não tem outro recurso senão proclamar o Evangelho a todos, indiscriminadamente. Embora válida, essa observação não atinge o ponto. A questão é se Deus, que sabe infalivelmente quais são os Seus eleitos e quais não são, faz sincero oferecimento da salvação a todos os que são alcançados pelo Evangelho. A Palavra de Deus ensina tanto a reprovação divina (Rm 9.21-22; 1Pedro 2.8) como a universalidade e a sinceridade do oferecimento do Evangelho (Ez 33.11; 2Pd 3.9).

Podemos admitir – ou melhor, tem que ser admitido – que estes ensinos não podem ser conciliados entre si pela razão humana. Todavia, a aceitação de um deles com a exclusão do outro é condenada como racionalismo. A norma da verdade não é ditada pela razão humana, e sim pela infalível Palavra de Deus.

Deve ser mencionado que na história da igreja cristã, os teólogos que têm insistido mais na verdade da rejeição divina, são os que têm defendido também, e da maneira mais enfática, o universal e sincero oferecimento do Evangelho. Seguem alguns exemplos:

Calvino ensinava a doutrina da reprovação divina. Às vezes ele parece até afirmar o supralapsarianismo. [34] No entanto, ao comentar Ezequiel 18.23, passagem paralela a Ezequiel 33.11, disse ele: “Não há nada que Deus deseja mais ardentemente do que, que aqueles que estejam perecendo e correndo para a destruição retomem o caminho da segurança”. E continuou: “Se alguém objetar – bem, neste caso não há nenhuma eleição de Deus pela qual Ele tenha predestinado um número fixo para a salvação – a resposta está à mão: o profeta não fala aqui do secreto conselho de Deus, mas somente evoca aos homens em desgraça o seu desespero, para que aprendam a esperança de perdão, arrependam-se e abracem a salvação oferecida. Se alguém mais contestar – isso é fazer Deus agir com duplicidade – a resposta está preparada, que Deus sempre quer a mesma coisa, embora por diferentes meios e de modo inescrutável para nós. Portanto, embora a vontade de Deus seja simples, grande variedade a envolve, no que diz respeito aos nossos sentidos. Além disso, não é surpreendente que nossos olhos sejam cegados por luz intensa, de modo que, certamente, não podemos julgar como é que Deus quer que todos se salvem e, contudo, destinou todos os reprovados à destruição eterna, e quer que eles pereçam. Enquanto olhamos através de um vidro, obscuramente, devemos satisfazer-nos com a medida do nosso entendimento”. [35]

Os Cânones de Dort ensinam a doutrina da reprovação. Dizem eles: “O que peculiarmente tende a ilustrar e a recomendar-nos a eterna e imerecida graça da eleição é o expresso testemunho da Sagrada Escritura de que não todos, mas somente alguns são eleitos, enquanto que outros são deixados de lado no decreto eterno. A estes Deus, por seu soberano, justíssimo, irrepreensível e imutável beneplácito, decidiu deixar caídos em sua miséria comum à qual se tinham lançado voluntariamente, e não lhes dar a fé salvadora e a graça da conversão. Mas, permitindo em seu justo julgamento que sigam os seus próprios caminhos, decidiu afinal, para a manifestação da sua justiça, condená-los e puni-los para sempre, não somente por causa da incredulidade deles, mas também por todos os seus outros pecados” (I, 15). Todavia, os Cânones insistem: “Todos quantos são chamados pelo Evangelho, são chamados com sinceridade. Pois Deus declarou ardorosa e verdadeiramente em Sua Palavra o que é aceitável a Ele, a saber, que aqueles que são chamados, venham a Ele” (III, IV, 8). [36]

Bavinck negou tanto que a fé seja a causa da eleição como que o pecado seja a causa da rejeição, e insistiu em que a eleição e a rejeição têm suas raízes no soberano beneplácito de Deus. Para ser exato, ele ensinou que Deus decretou soberanamente, desde a eternidade, que alguns homens escapariam da punição dos seus pecados, e outros não (Gereformeerde Dogmatick, II, 399). Mas na mesma obra clássica, Bavinck afirmou: “Embora através do chamamento a salvação se torne a porção de apenas uns poucos… ele [o chamamento], não obstante, é de grande valor e significação também para aqueles que o rejeitam. Para todos, sem exceção, é prova do infinito amor de Deus, e sela a declaração de que Ele não tem prazer na morte do pecador, mas que ele se volte e viva” (IV, 7).

NOTAS:

[1] – Calvino não começou com a predestinação e depois foi para a expiação, regeneração, justificação e outras doutrinas. Ele a introduziu como um problema resultante da pregação do evangelho. Por que, quando o evangelho é proclamado, alguns respondem e outros não? Nessa diversidade, ele afirmou, torna-se manifesta a maravilhosa profundidade do juízo de Deus. Trata-se, pois, de uma preocupação pastoral.

[2] – Fred. H. Klooster. A doutrina da predestinação em Calvino. São Paulo, SP: SOCEP, 1993.

[3] – Timothy George. Teologia dos Reformadores. São Paulo, SP: Vida Nova, 1993.

[4] – Adaptado, com alterações, de W. J. Saeton, Os cinco pontos do calvinismo, SP: PES.

[5] – Esta é a definição clássica, formulada no Sínodo de Dort: “Eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual Ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura. Estas são escolhidas de acordo com o soberano bom propósito de Sua vontade, dentre todo o gênero humano, decaído, por sua própria culpa, de sua integridade original para o pecado e a perdição. Os eleitos não são melhores ou mais dignos que os outros, mas envolvidos na mesma miséria” (Cânones de Dort, I.7).

[6] – João Calvino, Exposição de Romanos (Rm 9.16), p. 333.

[7] – Abraham Booth, Somente pela Graça, São Paulo, PES., 1986, p. 18.

[8] – Adaptado, com alterações, de R. B. Kuiper, Evangelização teocêntrica, SP: PES, e El cuerpo glorioso de Cristo, Michigan: SLC.

[9] – L. Coenen, Eleger: In: NDITNT, Vol. II, p. 35.

[10] – Cf. J. Calvino, Exposição de Romanos (Rm 9.15), p. 331-333. “Não busquemos a causa em parte alguma, senão na vontade divina. Notemos particularmente as expressões de quem quer e a quem lhe apraz. Paulo não permite que avancemos além disto” [J. Calvino, Exposição de Romanos (Rm 9.18), p. 337].

[11] – Cf. John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, p. 180-181; Anthony A. Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1997, especialmente, p. 62-64.

[12] – L. Coenen, Eleger: In: NDITNT, Vol. II, p. 34.

[13] – Para mais informações, sobre a doutrina da expiação, ver unidade 4.

[14] – João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (Sl 28.8), p. 609.

[15] – Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan, Baker Book House, 1984, p. 398.

[16] – Alguns dos escolhidos estão predestinados a morrer na infância. Todos estes, certamente, são regenerados antes que partam desta vida, e desde o próprio momento da regeneração possuem o que os teólogos chamam de habitus, a disposição da fé salvadora. Isso os torna membros do corpo de Cristo. E quanto aos escolhidos a quem são concedidos chegar à idade do juízo, seguramente nascerão de novo, embora nenhum ser humano pode dizer a que idade pudesse o Espírito querer conceder-lhe o nascer de novo; e em seu caso a regeneração resultará em uma consciente recepção do Salvador como Ele está apresentado no evangelho. Isso é outra forma de afirmar que cedo ou tarde, pela graça do Espírito Santo, serão membros viventes da igreja de Cristo.

[17] – Cf. J. Calvino, As Institutas, III.22.10.

[18] – G. Clark, Predestination in the Old Testament, A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament, p. 704.

[19] – Deve ser notado que em 2Tessalonicenses 3.2 Paulo diz que “a fé não é de todos” e em Tito 1.1 que a fé “é dos eleitos de Deus”.

[20] – Adaptado, com alterações, de Loraine Boettner, La predestinación, Michigan: SLC.

[21] -L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 116, argumenta: “Se Deus devesse perdão ao pecado e a vida eterna a todos os homens, seria injustiça se Ele salvasse apenas um número limitado deles. Mas o pecador não tem, absolutamente, nenhum direito ou alegação que possa apresentar quanto às bênçãos decorrentes da eleição divina. De fato, ele perdeu o direito a essas bênçãos. Não somente não tem direito de pedir contas a Deus por eleger uns e omitir outros, como também devemos admitir que Ele seria perfeitamente justo, se não salvasse ninguém, Mt 24.14.15; Rm 9.14.15”.

[22] – João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 30.

[23] – C.H. Spurgeon, Eleição, São Paulo, FIEL, 1984, p. 30.

[24] – Ver mais sobre este tópico na discussão sobre a doutrina da providência, no capitulo 3.

[25] – J. Calvino, As Pastorais (2Tm 2.19), p. 239. “Deus nos elegeu para sermos seu povo peculiar, a fim de fazer notório seu poder nos preservando e nos defendendo” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 46.7), p. 335].

[26] – “O Novo Testamento não diz que os crentes devem ter vidas santas a fim de se tornarem santos; ao invés disso, ensina que os crentes, por serem santos, devem viver vidas santas! Esse, pois, é o primeiro e fundamental aspecto do dom divino da santificação” (J. I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP. Fiel, 1994, p. 162-163).

[27] – Bruce Milne, Estudando as Doutrinas da Bíblia, pp. 190-191.

[28] – Para um estudo sobre a vinda dos primeiros missionários reformados ao Brasil, ver o ensaio de Franklin Ferreira, “A presença dos reformados franceses no Brasil colonial” em Vox Scripturae vol X no 1 (Dezembro 2000), pp. 51-86. Para um panorama mais amplo do envolvimento luterano e reformado com missões, durante a reforma protestante, no século XVI, ver David J. Bosch, Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão (São Leopoldo: Sinodal, 2002), pp. 293-319. É sugestivo que Bosch (1929-002), um dos maiores missiólogos do século vinte, tenha sido membro da Igreja Reformada Holandesa (na África do Sul). Ele foi missionário na África do Sul, entre o povo Xhosa, na cidade de Madwaleni, no Transkei. Mas seu impacto maior foi como professor e chefe do Departamento de Missiologia da Universidade da África do Sul.

[29] – R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 21.

[30] – R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 28.

[31] – J. Calvino, As Institutas, III.23.14.

[32] – Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, p. 390.

[33] – Archibald A. Hodge, considerando a situação dos réprobos, faz uma distinção ente o aspecto “negativo” e “positivo” da reprovação: “Em seu aspecto negativo a reprovação é simplesmente a não eleição, e é absolutamente soberana, fundada unicamente no beneplácito de Deus, que deseja eleger uns porque assim o quer e não porque sejam menos dignos. Positivamente, a reprovação não é soberana senão judicial, porque Deus há determinado tratar aos réprobos precisamente conforme os seus méritos e à vista de sua absoluta justiça”. A. A. Hodge, Esboços de Teologia, p. 67.

[34] – Para mais informações, ver as discussões sobre supralapsarianismo e infralapsarianismo, no capítulo 3.

[35] – ???.
[36] – ???.

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