JUSTIÇA NA TERRA 

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 Dt 19:1-21

O poeta quacre John Greenleaf Whittier chamava a justiça de “esperança de todos os que sofrem, terror dos que fazem o mal”. Esse é o ideal, porém nem sempre ele é alcançado na vida real. Sem justiça, a sociedade se desintegraria, a anarquia tomaria conta, e não seria seguro sair de casa. Israel não contava com uma força policial como a que temos hoje, de modo que encontrar e castigar criminosos dependia principalmente dos anciãos e dos juizes. Ao separar as “cidades de refúgio”, o Senhor promoveu a justiça na terra.

Os israelitas eram extremamente abençoados. Tinham o Senhor Deus como Rei, uma terra maravilhosa como lar e uma lei santa para guiá-los; no entanto, enfrentaram alguns dos problemas com que a sociedade de hoje se defronta. Devido à natureza humana pecaminosa, as nações sempre terão de tratar da “desumanidade entre os homens”, pois o coração de todo problema é o problema do coração. As leis são necessárias para colocar ordem na sociedade, para refrear o mal e para ajudar a controlar o comportamento dos indivíduos, mas as leis jamais podem mudar o coração humano. Isso só pode ser feito pela graça de Deus. Se há uma coisa que essa parte das Escrituras enfatiza é que Deus considera a vida humana extremamente preciosa e deseja que tratemos as pessoas com justiça, pois são criadas à imagem de Deus (Gn 9:1-7).

Eis o que Deus quer para todas as nações: “Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene” (Am 5:24). E seu padrão para nós como indivíduos é Miquéias 6:8: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o S e n h o r pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus”. Quando olhamos para este texto podemos aprender um pouco sobre a justiça na terra.

1-As cidades (w. 1-3, 7-10). Nesta passagem, Moisés faz uma revisão daquilo que havia ensinado a Israel em Números 35. Na verdade, ele já havia estabelecido três cidades de refúgio a leste do Jordão (Dt 4:42, 43). Caberia a Josué estabelecer outras três cidades a oeste do Jordão depois que Israel tivesse conquistado a terra (Js 20). As cidades a leste do Jordão eram Golã, Ramote e Bezer, e as do oeste eram Quedes, Siquém e Hebrom. Ao consultar um mapa da Terra Santa, vemos que, por sua localização, essas cidades eram de fácil acesso para aqueles que precisassem de proteção. As estradas que levavam a elas deviam ser mantidas em boas condições e marcadas claramente. A tradição rabínica diz que havia placas em todas as encruzilhadas indicando o caminho para a cidade de refúgio mais próxima. O Senhor queria dar à pessoa que havia cometido homicídio acidentalmente a oportunidade de escapar da vingança de outros.

O Senhor também queria que fossem acrescentadas mais três cidades de refúgio se as fronteiras de suas terra fossem expandidas. Ele havia prometido a Israel um vasto território (Gn 15:18; Êx 23:31), e se o povo tivesse obedecido à lei de Deus, ele teria cumprido sua promessa. Foi só durante o reinado de Davi que Israel chegou a controlar um território maior, mas a nação perdeu essas terras no processo de desintegração que ocorreu no reinado de Salomão. Se não obedecermos à vontade de Deus e não nos apropriarmos de suas promessas, é impossível receber tudo o que Deus deseja que tenhamos.

2-O homicida involuntário (vv. 4-6). A lei moderna ainda segue os princípios de Moisés ao fazer distinção entre homicídio doloso e homicídio culposo ou involuntário (Êx 21:12-14; Lv 24:17). A pessoa que matava outra sem ter a intenção de fazê-lo podia fugir para a cidade de refúgio mais próxima e apresentar seu caso aos anciãos. Se não fugisse, poderia acontecer de ser caçada e morta por um membro da família da vítima, um “vingador de sangue”. Israel não tinha um sistema para localizar e prender suspeitos de crimes e ficava ao encargo da família da vítima providenciar para que se fizesse justiça. O “vingador de sangue” não tinha autoridade para agir como juiz, júri e executor. Seu papel era apenas entregar o acusado para os oficiais. Porém, se esse parente estivesse irado, poderia tomar a lei em suas próprias mãos e matar um homem inocente. Ao fugir para a cidade de refúgio, o homicida involuntário estava seguro até que os fatos acerca do caso fossem examinados e que se apresentasse um veredicto. Se fosse considerado inocente, o homicida involuntário teria permissão de viver em segurança na cidade de refúgio até a morte do sumo sacerdote. Apesar de ser inocente, ainda assim pagava um preço por ter tirado acidentalmente a vida de outro ser humano. Se deixasse a cidade de refúgio, correria risco de vida, e os anciãos não teriam como protegê-lo.

Essas cidades de refúgio ilustram nossa salvação em Jesus Cristo, para o qual “já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta” (Hb 6:18), mas tal ilustração baseia-se num contraste: o homem que fugia para o refúgio em Israel o fazia porque não era culpado de assassinato; nós, porém, fugimos porque somos culpados e merecemos ser julgados. Ninguém precisa investigar nossa causa, pois sabemos que pecamos e que merecemos o castigo de Deus. No caso das cidades de refúgio, o homem inocente podia viver, mas em nosso caso, Jesus Cristo, o inocente, foi condenado à morte. O israelita deveria permanecer na cidade de refúgio, pois, se a deixasse, poderia morrer nas mãos do vingador. A salvação que temos em Cristo não é condicionada por nossa obediência, mas depende inteiramente da graça de Deus e de suas promessas. “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10:28). “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1). O homicida involuntário em Israel

tinha direito, pela lei, de deixar a cidade de refúgio depois da morte do sumo sacerdote, mas nosso Sumo Sacerdote no céu é imortal e vive para sempre, a fim de interceder por nós (Hb 7:25).

3-O homicida doloso (w. 11-13). Porém, podia acontecer de um homem que havia assassinado seu inimigo fugir para uma cidade de refúgio e mentir para os anciãos, dizendo-lhes que era inocente. Cabia aos anciãos da cidade de origem do homicida esclarecer os fatos enviando alguém para a cidade de refúgio e levando o homem de volta para a própria cidade. Os anciãos da cidade de refúgio deveriam extraditar o acusado para que pudesse ser devidamente julgado e, se considerado culpado, ser executado. Deus esperava que cada cidadão se preocupasse em ver a justiça sendo feita na terra. Seria fácil para os oficiais da cidade de origem do homicida deixarem que os anciãos da cidade de refúgio se preocupassem com o caso, mas com isso não estariam promovendo a justiça nem evitando a profanação da terra. Em Israel, o derramamento de sangue inocente profanava a terra, e uma forma de purificá-la era punir o transgressor. “Assim, não profanareis a terra em que estais; porque o sangue profana a terra; nenhuma expiação se fará pela terra por causa do sangue que nela for derramado, senão com o sangue daquele que o derramou” (Nm 35:33).

O homicídio era um dos vários crimes capitais em Israel. Os outros eram idolatria e feitiçaria (Lv 20:1-6), blasfêmia (Lv 24:10- 16), violação do sábado (Nm 15:32-36), desobediência deliberada e repetida aos pais (Dt 21:18-21; Êx 21:15, 17), rapto (Êx 21:16), bestialidade (Êx 22:19), homossexualidade (Lv 20:13), adultério e estupro de uma virgem comprometida (Dt 22:22- 27). Não temos tantos crimes considerados capitais hoje em dia, mas Israel era uma teocracia, e suas leis eram as leis de Deus. Infringir a lei significava pecar contra o Senhor e profanar a terra, e o povo precisava entender a seriedade de tais atos. Em 1972, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou a pena de morte inconstitucional, mas ela voltou a vigorar em 1976. A pena de morte pode não impedir todos os homicidas em potencial de tirar a vida de outra pessoa, mas ela exalta a preciosidade da vida humana e também honra a lei.

4-O ladrão (v. 14). Depois que Israel conquistasse a terra de Canaã, cada tribo teria seu território, e suas fronteiras seriam definidas em detalhes. Josué, Eleazar, o sumo sacerdote, e os chefes das doze tribos lançaram sortes e fizeram a distribuição da terra (Js 14:1, 2). Dentro das tribos, cada família e clã faria sua própria divisão e demarcação por meio de marcos de delimitação. Naquele tempo, os oficiais não faziam mapas detalhados das propriedades. Esperava-se que todos respeitassem os marcos de delimitação, pois movê-los significava roubar as terras de seus vizinhos e dos descendentes deles (Pv 22:28). Oficiais inescrupulosos podiam facilmente explorar viúvas e órfãos pobres e tomar sua terra e sua renda (Pv 15:25; 23:10,11). Uma vez que a terra pertencia a Deus e que o povo era seu inquilino, mover os marcos de delimitação também significava roubar de Deus, e ele os castigaria por isso (Os 5:10). Não é de se admirar que esse crime estivesse entre as maldições declaradas no monte Ebal (Dt 27:17).

O castigo para o homicida lembrava o povo de que a vida humana é preciosa, e o castigo para o ladrão os lembrava de que a propriedade particular deve ser respeitada. “Não furtarás” (Êx 20:15) é um mandamento que abrange muito mais do que proibir um ladrão de entrar numa casa e de levar o que não lhe pertence. A extorsão também é roubo (Sl 62:10), e Deus condena os oficiais que criam leis injustas para roubar dos pobres e desamparados (Ez 22:29). Calúnia, difamação e falso testemunho roubam das pessoas seu bom nome (Dt 19:16-19; Mt 15:19, 20), e uma boa reputação é mais difícil de recuperar do que bens materiais roubados.

5-O mentiroso (vv. 15-21). Todo sistema judiciário depende de as pessoas saberem e dizerem a verdade. O falso testemunho é uma transgressão a um dos mandamentos de Deus (Êx 20:16) e enfraquece os alicerces do sistema legal. A pessoa que jura dizer a verdade e depois mente está cometendo um crime grave chamado perjúrio. A lei de Israel exigia que houvesse duas ou três testemunhas para determinar a culpa de uma pessoa acusada (Dt 17:6; Nm 35:30), e tanto Jesus (Mt 18:16) quanto Paulo (2 Co 13:1; 1 Tm 5:19) aplicaram esse princípio à disciplina na igreja local. O fato de duas ou três pessoas darem testemunho não garante que estejam dizendo a verdade (1 Rs 21:1-14), mas Moisés advertiu que as falsas testemunhas seriam castigadas com a mesma pena que pediam para o acusado.

No entanto, podia haver uma situação em que somente uma testemunha se apresentasse para acusar uma pessoa e o fizesse falsamente. O que fazer, então? Tanto o acusado quanto a testemunha teriam de ir à corte do santuário para apresentar o caso aos sacerdotes e juízes de lá (Dt 17:8-13). Se o tribunal descobrisse que a testemunha não estava dizendo a verdade, ela receberia a mesma sentença que teria sido dada ao acusado se fosse culpado. Essa lei faria os mentirosos pensarem duas vezes antes de acusar falsamente uma pessoa inocente. Só o fato de ter de ir ao tribunal dos sacerdotes seria intimidação suficiente, pois o Senhor poderia transmitir sua verdade aos sacerdotes e juízes e expor a perversidade do acusador. Porém, saber que poderiam receber a mesma pena que desejavam para o acusado também os faria hesitar, especialmente no caso de crimes capitais. “A falsa testemunha não fica impune, e o que profere mentiras perece” (Pv 19:5, 9).

Às vezes, ouvimos dizer que o medo do castigo não impede as pessoas de infringir a lei, mas não é o que diz Deuteronômio 19:20: “Para que os que ficarem [o restante do povo] o ouçam, e temam, e nunca mais tornem a fazer semelhante mal no meio de ti”. Toda lei criada até hoje provavelmente já foi infringida muitas vezes, e nem todos os infratores foram detidos e julgados. No entanto, isso não prova que a instauração de um processo contra aqueles que foram detidos não contribuiu em nada para a sociedade e não preveniu mais criminalidade.

Moisés encerrou essa parte de seu discurso lembrando o povo de que, em todo o caso, o castigo deveria corresponder ao crime (v. 21; ver Êx 21:23-25). Esse princípio é conhecido como lex talionis, termo em latim que significa “lei da retaliação”. Aqueles que consideram esse princípio “rudimentar” provavelmente não compreendem seu significado. A sentença não deve ser nem muito severa nem muito branda, mas sim estar de acordo com o que a lei exige e com o que o criminoso condenado merece. Juízes honestos não dão a um assassino a mesma sentença que dão ao homem que envenenou o gato do vizinho, nem um ladrão de lojas recebe a mesma pena que um sequestrador. Esse princípio judicial enfatizava a equidade e o tratamento humanitário numa época da história em que os castigos eram terrivelmente brutais. Na Inglaterra do século dezoito, havia mais de duzentos crimes capitais, e um trombadinha podia ser condenado à forca. Era comum as crianças que transgrediam a lei ser tratadas como adultos e presas por pequenas infrações.

Quando Jesus fez referência à lex talionis, em seu sermão da montanha (Mt 5:38-42), não estava falando sobre o sistema judiciário oficial, mas sobre como os cristãos devem tratar ofensas e insultos pessoais. Ele não anulou a lei do Antigo Testamento, pois veio para cumpri-la (Mt 5:17-20). Antes, proibiu que seus seguidores “pagassem com a mesma moeda” àqueles que os ofendessem ou que se aproveitassem deles. Se nossos tribunais seguissem as ordens do Senhor encontradas nos versículos 38-42, o país estaria nas mãos dos criminosos! Jesus nos exortou a não praticar a vingança pessoal, mas sim deixar essas questões nas mãos de Deus (Rm 12:17-21). Devemos imitar o Mestre e pagar o mal com o bem, o ódio com o amor e o egoísmo com o sacrifício (1 Pe 2:11-25).

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Pastor Eli Vieira é casado com Maria Goretti e pai de Eli Neto. Responsável pelo site Agreste Presbiteriano, Bacharel em Teologia, Pós-Graduado em Missiologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte, Recife-PE e cursando Psicologia na UNINASSAU. Exerce o seu ministério pastoral na Igreja Presbiteriana do Brasil desde o ano 1997 ajudando as pessoas a encontrarem esperança e salvação por meio de Jesus Cristo. Desde a sua infância serve ao Senhor, sendo educado por seus pais aos pés do Senhor Jesus que me libertou e salvou para sua honra e glória.

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