Reflexões sobre Política no Brasil – O paradoxo da esquerda no Brasil

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Luiz Carlos Bresser-Pereira – Novembro 2005

A idéia de esquerda, como todas as demais idéias e instituições na América Latina, é uma idéia transplantada e em grande parte inautêntica. Não obstante, é um fenômeno real, na medida em que em países capitalistas e democráticos é sempre possível distinguir a esquerda da direita. No caso do Brasil, que é o objeto deste trabalho, a esquerda é uma realidade tão viva e poderosa que se justifica a questão central que quero aqui responder: por que a esquerda no Brasil ganhas eleições mas não governa? Este trabalho vai girar em torno dessa questão, que pressupõe um conceito amplo de esquerda, e do problema relacionado: existe uma especificidade para a esquerda na América Latina e, especificamente, no Brasil? Em que ela se distingue ou deve se distinguir da esquerda na Europa, que sempre lhe serviu de parâmetro, para poder ser autêntica e ter condições de governar?

Estas questões não têm respostas unívocas. Estamos no campo minado das ideologias, no qual é preciso combinar o método histórico-dedutivo da boa ciência social com o método normativo da teoria política. Espero, entretanto, conseguir dar uma resposta que nos ajude a compreender a dinâmica e as crises da esquerda no Brasil. Uma resposta que seja suficientemente aberta para poder abrigar uma realidade tão complexa e, ao mesmo tempo, suficientemente precisa para não se constituir em mero rol de lugares-comuns.

Para responder a primeira questão, eu terei que voltar a definir esquerda e direita. E justificar por que não trabalho com o conceito de ‘centro’, pressupondo que uma pessoa ou um partido é de esquerda ou de direita. Isto não significa que não admita as situações ambíguas, mas que não quero me perder nelas. Em segundo lugar, terei que mostrar que a esquerda geralmente ganha as eleições no Brasil desde a transição democrática de 1985. Em seguida, terei que explicar por que a esquerda ganha as eleições mas o governo que se forma afinal não é de esquerda, não representando os interesses dos pobres. Para isso, precisarei de duas coisas: do conceito de sociedade civil que, tanto no Brasil como nos demais países da América Latina, diverge, muito mais do que em países desenvolvidos, do conjunto dos eleitores votantes, que chamarei do povo; e de um entendimento maior do que sejam efetivamente esquerda e direita na região ou no Brasil.

Conceito de esquerda e direita

Há alguns anos venho propondo um conceito geral de esquerda e direita que reproduzirei aqui. Este conceito supõe que as sociedades modernas têm como objetivos políticos a ordem ou segurança, a liberdade, o bem-estar, a justiça, e a proteção da natureza ou do meio ambiente. A esquerda não se distingue da direita em termos de liberdade ou de promoção do bem-estar através do desenvolvimento econômico. Ainda que a liberdade política tenha sido originalmente uma conquista da burguesia que usou para isso a ideologia do liberalismo, a democracia foi, antes do que qualquer outra coisa, uma conquista dos pobres e das classes médias, que durante o século dezenove lutaram duramente com os liberais para obterem o sufrágio universal. Por outro lado, embora uma parte da esquerda – a utópica – desdenhe o desenvolvimento econômico que considera assegurado pelo capitalismo, quando partidos ou coalizões de esquerda chegaram ao poder na Europa revelaram-se tão interessados e capazes de promover o desenvolvimento econômico quanto partidos e coalizões de direita. Já em relação à ordem, à justiça e à proteção do ambiente as diferenças são claras. São tão claras que possibilitam a seguinte definição de esquerda e direita. A direita é o conjunto de forças políticas que, em um país capitalista e democrático, luta principalmente por assegurar a ordem, dando prioridade a esse objetivo, enquanto a esquerda reúne aqueles que estão dispostos, até um certo ponto, a arriscar a ordem em nome da justiça – ou em nome da justiça e da proteção ambiental, que só na segunda metade do século vinte assumiu o estatuto de objetivo político fundamental das sociedades modernas [1].

Adicionalmente, a esquerda se caracteriza por atribuir ao Estado um papel ativo na redução da injustiça social ou da desigualdade, enquanto a direita, percebendo que o Estado, ao se democratizar, foi saindo gradualmente do seu controle, defende um papel do Estado mínimo, limitado à garantia da ordem pública, e dá uma absoluta preponderância para o mercado na coordenação da vida social. Em relação ao Estado, porém, dentro da própria direita há divergências, porque a experiência histórica mostra que apenas quando há uma forte aliança dos empresários com a burocracia do Estado é que se consubstancia uma estratégia nacional de desenvolvimento. Por outro lado, por muito tempo a esquerda rejeitou o Estado, que, para Marx, seria “o comitê executivo da burguesia”, e para os anarquistas, o mal maior. No entanto, o que a experiência histórica da democracia, mais do que do liberalismo, demonstrou é que, nas democracias, o Estado foi deixando de representar exclusivamente os interesses da classe dominante para se transformar em principal instrumento de ação coletiva à disposição da sociedade. Enquanto, no processo histórico, o capitalismo se revelava, a um só tempo, um regime intrinsecamente injusto e corrupto, mas o único sistema econômico viável porque relativamente eficiente, a democracia se revelava o instrumento por excelência através do qual as sociedades modernas domavam esse capitalismo: tornavam-no menos injusto e menos corrupto. Por isso, a esquerda reconciliou-se com o Estado, tornando-se prioritário para ela, nos termos de Sader, “a deslocação da polarização neoliberal entre estatal/privado para a construção do caráter público do Estado brasileiro” [2]. Quanto mais democrático se torna o governo do Estado, mais público se torna, ou seja, mais atende às demandas dos cidadãos e menos às das minorias poderosas.

Embora a defesa da intervenção do Estado regulando e corrigindo o capitalismo seja importante na distinção entre direita e esquerda, o elemento central dessa definição está na oposição entre ordem e justiça social. A proteção do meio ambiente é também crescentemente importante, na medida em que os grupos políticos que adotam essa posição sejam normalmente também antes de esquerda do que de direita. Já os outros dois objetivos políticos centrais das sociedades modernas (a liberdade e o bem-estar) não distinguem historicamente a esquerda da direita, já que, no passado, tivemos a defesa ardorosa da liberdade e a competência em promover o bem-estar dos cidadãos partindo tanto de governos de esquerda quanto de direita, como tivemos a violência contra a democracia e a incompetência em promover o desenvolvimento econômico originando-se em partidos políticos com as duas orientações. Quando, porém, se trata da ordem, o verdadeiro conservador não hesita, e lhe dá sempre prioridade sobre a igualdade, que, para ele, muitas vezes, sequer é um valor significativo. Já o verdadeiro progressista também preza a ordem, a segurança, mas sabe que o progresso social envolve uma liberdade para o protesto por parte dos mais pobres, dos que de alguma forma se sentem oprimidos, que implica um certo risco para a ordem. O conservador afirma em qualquer hipótese o primado da lei; o progressista reconhece a necessidade do Estado de Direito, mas sabe também que a lei é com freqüência feita para defender os ricos contra os pobres e que estes, muitas vezes, não têm alternativa para se fazer ouvir senão enfrentar a lei. A democracia é o regime da ordem, da lei e do compromisso, mas é também o regime do conflito social e da argumentação. A esquerda sabe que entre a justiça e a ordem existe uma contradição que os regimes democráticos devem, em princípio, ajudar a resolver, enquanto a direita busca sempre que possível negar essa contradição na medida em que o Estado de direito ou o império da lei tem absoluta precedência sobre a justiça. Para a esquerda a lei muitas vezes representa o status quo e, portanto, os interesses dos ricos, e por isso precisa ser mudada a partir da pressão dos movimentos sociais, os quais, por falta de alternativa, nem sempre usam de meios puramente legais para exercer essa pressão. Já para a direita essa forma de arriscar a ordem ou a lei é inaceitável.

A esquerda em toda parte, inclusive no Brasil, enfrenta uma contradição básica: enquanto a direita representa claramente os interesses dos ricos, que são os principais defensores da ordem, a esquerda, em princípio, deveria representar os interesses dos pobres ou dos trabalhadores, mas, na prática, freqüentemente representa também os interesses das classes médias profissionais ligadas ao Estado. Existe aí um problema sério porque, por mais que essa classe média profissional procure se identificar com os pobres que pretende informalmente representar, ela acaba representando também seus próprios interesses. O fato de esquerda e direita representarem interesses de classe é inevitável e até desejável desde que essa representação não seja meramente corporativa – ou seja, desde que o político não suponha que seu papel é o de simplesmente representar os interesses daqueles que o apóiam ou o elegem. Nos países mais avançados politicamente esse corporativismo é contrabalançado pelo espírito republicano dos cidadãos e dos políticos, que logram, até um certo ponto, agir em função de suas convicções sobre o que seja o interesse público mesmo quando isso colide com seus interesses pessoais.

A definição que acabei de apresentar para direita e esquerda é uma definição histórica, que parte da observação empírica do comportamento efetivo dos grupos políticos identificados como esquerda ou direita. Em uma definição desse tipo não seria necessário acrescentar que a esquerda defende, teoricamente, o socialismo e, na prática, o estatismo, enquanto a direita defende o capitalismo? Sim, mas com diversas restrições. O socialismo foi uma utopia da esquerda por muito tempo, mas quando esta se viu plenamente no poder, como aconteceu depois da revolução comunista de 1917, o sistema econômico que foi afinal estabelecido foi o estatismo, não o socialismo. Por quê? Essencialmente porque a sociedade russa estava longe de ter a igualdade de conhecimentos que seria necessária para se poder implantar com êxito um regime socialista. Essa é a contradição central da revolução socialista: ela busca a igualdade, mas, para alcançá-la, precisa que a igualdade, pelo menos de conhecimentos ou capacidades, já esteja razoavelmente implantada. Mesmo os países hoje mais desenvolvidos e com trabalhadores mais educados teriam dificuldades em estabelecer um regime socialista porque as diferenças de educação e competência técnica e organizacional entre os cidadãos continuam muito grandes. O que dizer de uma sociedade atrasada como era a Russa e todas as demais que realizaram revoluções pretendidamente socialistas? Estabeleceu-se ali, portanto, não o socialismo mas o estatismo. Este teve êxito em promover a industrialização pesada a partir de uma forte acumulação forçada de poupanças, mas afinal revelou sua incapacidade econômica de competir com o capitalismo. Dessa forma, o ideal socialista continua a ser um ideal das esquerdas, mas especialmente o centro-esquerda, ou esquerda moderada, limita-se a pensar nele como uma utopia e trata de promover de forma reformista a justiça e a defesa do meio ambiente no capitalismo.

Há muitos tipos de esquerda, mais do que de direita, provavelmente porque esta, além dos valores e idéias, tem o capital a uni-la enquanto a esquerda só tem valores e idéias. Podemos distinguir pelo menos quatro tipos de esquerda: a extrema-esquerda, a esquerda utópica, a esquerda burocrático-sindical e o centro-esquerda. A extrema-esquerda é revolucionária, não vendo na democracia existente senão uma forma de dominação: pretende assumir o poder revolucionariamente para, em seguida, implementar o que denomina socialismo, mas que é mais correto chamar de estatismo. A esquerda utópica prefere não disputar o poder para manter seus ideais socialistas e para poder ser uma força crítica dentro da sociedade. Nos dias atuais, esse é o caso, principalmente, do extraordinário movimento ‘outromundialista’, que se formou a partir dos Fóruns Sociais Mundiais. Seus participantes mais representativos afirmam que não aspiram ao poder, mas querem ser a consciência crítica das sociedades capitalistas contemporâneas e querem “contribuir para que a sociedade faça prevalecer, em toda parte, a justiça social, a solidariedade e a paz”, ou, em outras palavras, “um outro mundo possível” [3]. Esse objetivo é sem dúvida legítimo, e o movimento já tem dado contribuições positivas na direção pretendida, na medida em que a enorme repercussão de suas ações tem obrigado os governantes conservadores ou progressistas a mudar algo de suas políticas. A esquerda burocrático-sindical joga o jogo democrático, tem bases fortes na burocracia do Estado e nos sindicatos, se autodenomina esquerda simplesmente, e, enquanto fora do poder, mantém um discurso formalmente socialista. O centro-esquerda reconhece a impossibilidade de uma transição para o socialismo dentro de um prazo previsível e, usando uma frase de Michel Rocard, trata de “governar o capitalismo mais competentemente que os capitalistas”. Ou seja, é uma esquerda reformista, que durante o século vinte foi socialdemocrata, mas que está se transformando em um centro-esquerda social-liberal, na medida em que os partidos de esquerda na Europa vêm reformando suas economias e seu Estado no sentido de manter a garantia aos direitos sociais e aprofundar a igualdade, ao mesmo tempo em que aceitam um papel mais ativo de mercados regulados na coordenação do sistema.

O social-liberalismo representa uma superação positiva da socialdemocracia; entretanto, da mesma forma que a socialdemocracia foi por muito tempo acusada de trair os ideais do socialismo revolucionário, agora se acusa o social-liberalismo de trair os ideais da socialdemocracia. Hoje, os países que apresentam governos de esquerda mais bem-sucedidos, como é o caso dos países escandinavos, da Holanda e da Grã-Bretanha, estão deixando de ser socialdemocratas para serem social-liberais. A reforma da gestão pública, contratando com organizações de serviço públicas não-estatais a realização, de forma competitiva, de serviços sociais e científicos, é a principal mudança. Com isso o Estado diminui o número de servidores, mantendo-se dentro do aparelho do Estado apenas servidores de alto nível e prestígio. A despesa pública em relação ao PIB se mantém elevada, mas, paralelamente, aumenta substancialmente a eficiência dos serviços prestados pelo Estado, e os direitos sociais passam a ser mais bem respeitados, devido à melhoria da quantidade e da qualidade dos serviços prestados com os mesmos recursos [4]. Embora essa perspectiva da reforma da gestão pública prestigie os altos servidores públicos, ela não tem espaço para servidores de nível médio e baixo, ou para aqueles que não realizam atividades específicas de Estado. Não é surpreendente, por isso mesmo, que encontre forte oposição da esquerda burocrático-sindical.

Entre a extrema-esquerda e o centro-esquerda há, naturalmente, uma gradação de posições saindo do discurso da revolução para o da reforma social. Poderíamos chamar apenas de ‘esquerda’ a posição intermediária, que é cara aos intelectuais: uma esquerda que não faz compromissos nem com a burguesia nem com a burocracia. Esta esquerda, porém, não existe no plano político: só existe idealmente. No Brasil, um dos seus principais intérpretes é Emir Sader, que, ao invés de opor a justiça social à ordem, define a esquerda pela oposição entre a justiça e o neoliberalismo. “No Brasil”, diz ele, “ser de esquerda significa a contraposição ao neoliberalismo”. Essa é uma definição correta porque é através do neoliberalismo que a ordem hoje se manifesta, embora haja um número razoável de conservadores que também se opõem ao neoliberalismo. Por outro lado, o problema da revolução socialista é evitado através da idéia de que “ser de esquerda no mundo de hoje significa participar de forma concreta de uma nova sociedade” [5]. Quando, entretanto, se procura saber qual o conteúdo dessa nova sociedade, verificamos que esse projeto não existe porque seus propugnadores sabem não poder ser socialista mas não querem admitir o capitalismo reformado. Como fica claro em uma obra posterior, o mais importante seriam mudanças na política econômica. Segundo Sader, essa nova sociedade teria como pilares (a) a renegociação da dívida externa, (b) a renegociação da dívida pública, e (c) políticas econômicas que privilegiam a distribuição de renda [6]. Independentemente de minhas ressalvas pessoais em relação a essas políticas [7], o que é importante assinalar aqui é que elas não levam a uma ‘nova sociedade’: apenas buscam reformar muito modestamente o capitalismo. Não há, portanto, razão prática para, no plano ideológico – que é aquele em que nossa discussão está inserida –, distinguir esquerda de centro-esquerda, a não ser que quiséssemos incluir entre os critérios de distinção um critério de competência ou de propriedade das políticas econômicas sugeridas – o que não é o caso.

O centro inexistente mas fundamental

Na discussão do conceito de esquerda é essencial, ainda, debater o problema do centro – ou, mais especificamente, do centro que se move. No meu entender, no quadro das sociedades modernas, não existem agrupamentos políticos de centro. Aqueles que assim se autodenominam são sempre de direita. Na verdade, alguém ou algum grupo ou é de esquerda ou de direita. Podemos e devemos transformar essa dicotomia em uma escala ideológica que vai da extrema-direita para a extrema-esquerda, passando pela direita, o centro-direita, o centro-esquerda e a esquerda. Ficamos, assim, com uma escala de seis formações políticas, mas sem um centro. Nessa escala o centro é inexistente: alguém ou algum grupo ou é de esquerda ou de direita. É inexistente mas, como ponto virtual, é fundamental. Porque esse centro se move ciclicamente ora para um lado ora para outro, e porque toda a luta ideológica entre a esquerda e a direita nas democracias modernas se trava em torno de empurrar esse centro mais para a esquerda ou mais para a direita.

O que vimos no mundo, desde meados dos anos 70, foi o êxito da direita, através da ofensiva ideológica neoliberal, em mover o centro para a direita. Nos anos 90, diante do fracasso parcial das reformas e promessas da direita, iniciou-se um movimento do centro para a esquerda, mas a eleição infausta e controvertida de um presidente radicalmente conservador no país dominante, os Estados Unidos, interrompeu esse processo. Na América Latina, porém, na qual o fracasso das reformas neoliberais foi radical, o movimento do centro para a esquerda vem continuando. Isto aconteceu porque algumas dessas reformas, especialmente a abertura financeira, além de serem concentradoras de renda, revelaram-se contrárias aos interesses nacionais do desenvolvimento econômico. O enorme desenvolvimento dos países asiáticos, que, embora comprometidos com o desenvolvimento capitalista, rejeitaram as reformas propostas ou pressionadas a partir do Norte, vem aprofundando esse movimento dos países latino-americanos para a esquerda, não obstante a hegemonia que os Estados Unidos exercem sobre a região.

O centro inexistente, ou, mais precisamente, apenas existente como realidade virtual, como ponto de referência a dividir a esquerda da direita, é, assim, paradoxalmente todo-poderoso, porque a luta político-ideológica nas democracias modernas diz respeito a ele. Os movimentos do centro são, naturalmente, pendulares: ora o centro caminha para a esquerda, como aconteceu no mundo a partir da Grande Depressão dos anos 30, ora caminha para a direita, como ocorreu a partir de meados dos anos 70. Esses movimentos ocorrem na medida em que as propostas de governo de um ou de outro grupo se esgotam, e os eleitores situados mais próximos ao centro deslocam-se na direção oposta àquela dominante.

Por outro lado, é preciso considerar que o centro varia geograficamente. Nos Estados Unidos, onde nunca houve um movimento socialista forte, o centro está muito mais à direita do que na Grã-Bretanha, e, por sua vez, está mais à direita nesta última do que na França, na Alemanha ou na Espanha. Esta diferença geográfica de colocação do centro se deve a razões de ordem histórica que não importa aqui discutir. O que é importante deixar claro é o fato de que, se aceitarmos essa variação no centro, o conceito de esquerda e direita torna-se relativo. Políticas que são consideradas de esquerda nos Estados Unidos poderão ser consideradas de direita na França. Os políticos progressistas ou de esquerda americanos são geralmente associados ao Partido Democrata e são denominados ‘liberais’, numa referência ao século dezoito e começo do dezenove, quando os liberais eram progressistas lutando em nome da burguesia contra os conservadores ainda aliados à aristocracia.

Entretanto, é preciso assinalar que, ao afirmar que o centro se move no tempo e que varia geograficamente de país para país, reconheço uma limitação na definição teórica que ofereci inicialmente. Se for estrito em definir esquerda e direita em relação à ordem e à justiça, não faria sentido essa variação. Arriscar a ordem, admitir a ação de movimentos sociais, como greves, restringir sem violência ações ilegais de outros movimentos sociais, como as invasões que, no Brasil, os sem-terra e os sem-teto com freqüência promovem, e apoiar suas reivindicações, seria sempre de esquerda. Em contrapartida, defender a lei a qualquer preço, usar da autoridade tradicional e religiosa para justificar posições políticas e morais seria sempre de direita. Isto, porém, é verdadeiro até certo ponto. Nas questões sociais, o princípio da razoabilidade deve sempre prevalecer, e esse princípio rejeita distinções claras e precisas entre o branco e o preto. A realidade social é ambígua, assim como o ser humano. A direita tende a pressupor que o ser humano é, por natureza, egoísta ou auto-interessado, a esquerda, a pensá-lo como generoso ou capaz de generosidade. Na verdade, o ser humano é intrinsecamente contraditório e, portanto, ambíguo. Ele nasce com duas necessidades fundamentais e contraditórias: de um lado, o instinto da sobrevivência o faz individualista e egoísta, de outro, o instinto da convivência o torna solidário e cooperativo. Toda sociedade humana está baseada nessa ambigüidade, e por isso os cientistas sociais enfrentam tanta dificuldade em prever seu comportamento.

Esquerda e nação

O interesse e a capacidade de promover o desenvolvimento econômico, como o de promover a liberdade, não distinguem a esquerda da direita. Naturalmente, cada um dos agrupamentos políticos afirmará que é mais capaz tanto de uma coisa como de outra, mas, historicamente, vimos governos de direita e de esquerda sendo bem-sucedidos e sendo desastrosos em relação a esses dois objetivos políticos. Entretanto, nesta seção argumentarei que, quando se pensa na definição de esquerda em países em desenvolvimento, seria preciso incluir a idéia de desenvolvimento como um objetivo básico e a idéia de nação como objetivo para o desenvolvimento. Historicamente, na Europa do século dezenove e de Marx, a burguesia era nacionalista e a esquerda, internacionalista. O internacionalismo da internacional socialista, porém, nunca convenceu os trabalhadores, que não hesitaram em de alguma forma se associar à burguesia e aos técnicos do governo quando se tratava de competir internacionalmente. Foi isso que permitiu que todos os países capitalistas bem-sucedidos no plano econômico ao mesmo tempo consolidassem o projeto de construção de seus Estados-nação. Uma nação só ganha coesão e força, e o Estado só se torna o instrumento de ação coletiva dessa nação, se as classes sociais, não obstante seus conflitos, são capazes de se tornar solidárias quando se trata de competir com outras nações. No momento, porém, em que a construção nacional e o desenvolvimento se consolidaram naqueles países do Norte, o nacionalismo deixou de ser uma ideologia expressa para se tornar subentendida. O nacionalismo é a ideologia da construção do Estado-nação, é o princípio básico que alimenta as relações internacionais tanto na sua fase da Diplomacia do Equilíbrio de Poderes como na da Política do Sistema Global, e é a afirmação da prioridade dos interesses nacionais em relação aos demais países vistos como competidores. Na prática, implica atribuir aos governos a responsabilidade de defender o trabalho, o conhecimento e o capital nacionais. Hoje, nesses países, como nos países dinâmicos da Ásia – e muito diferentemente do que acontece nos países dependentes da América Latina –, praticamente ninguém tem dúvida de que esse é o dever de seus governos, de forma que se tornou desnecessário reafirmar o próprio nacionalismo, transformado em valor consensual. Tornou-se, então, possível ocultar essa perspectiva, que sempre é incômoda nas relações internacionais, e reservar o adjetivo ‘nacionalista’ para as perversões do nacionalismo, para suas expressões extremadas e violentas como o nazismo, ou para formas de populismo de direita ou de esquerda em países em desenvolvimento. Para os países ricos, esse ocultamento que naturalmente se processou tem a vantagem não prevista de neutralizar o eventual nacionalismo dos países em desenvolvimento, tornando suas elites mais dóceis às diretrizes vindas do Norte, principalmente às políticas de seu interesse de caráter econômico.

Diante desse quadro, a esquerda nos países em desenvolvimento não pode reproduzir o discurso sobre o nacionalismo dos países ricos, inclusive de sua esquerda. O motivo não é apenas o nível de desenvolvimento econômico e político desses países, menor do que o da França, Alemanha ou Grã-Bretanha. É preciso não esquecer que o Brasil, embora apresentando uma sociedade dual e, portanto, uma economia subdesenvolvida, já é uma sociedade capitalista moderna. Porém, é preciso também considerar que, sem uma atitude nacionalista, os países de desenvolvimento médio não lograrão evitar a dominação vinda do Norte se não adotarem as políticas e instituições necessárias para seu desenvolvimento. Nos últimos 20 anos, enquanto os países asiáticos dinâmicos continuavam a usar do nacionalismo para construir seus Estados nacionais e para promover com êxito seu desenvolvimento, os países latino-americanos, inclusive o Brasil, que entre os anos 30 e 80 estavam realizando suas revoluções nacionais, viram essa construção ser interrompida [8]. Nos últimos 20 anos a nação brasileira, a partir da crise da dívida externa transformada em crise fiscal do Estado e em alta inflação, enquanto era submetida à onda ideológica neoliberal e globalista vinda do Norte, perdeu autonomia real e voltou à condição semicolonial. Isto ocorreu porque o antigo modelo nacional-desenvolvimentista, que fora bem-sucedido em promover a industrialização do país entre 1930 e 1980, entrou em crise. Ocorreu também porque a pressão ideológica globalista vinda do Norte, afirmando que na era da globalização o Estado-nação perdera relevância e anunciando a governança global em um mundo sem fronteiras, tornou-se fortíssima a partir daquela mesma data. E ocorreu, finalmente, porque as elites brasileiras conservadoras e dependentes, principalmente aquelas ligadas ao setor financeiro, aderiram rapidamente às novas idéias.

Nestes termos, seria razoável esperar que, nos países latino-americanos, a esquerda fosse nacionalista e tivesse como prioridade o desenvolvimento econômico. Isto aconteceu no passado, no Brasil, quando os grupos de esquerda mais representativos afinal se associaram aos empresários industriais no pacto nacional-desenvolvimentista de Vargas e Kubitschek (1930-1960). Na América Latina, porém, a esquerda deixou de ser nacionalista desde que os empresários apoiaram os golpes militares no Cone Sul. A adoção da ‘teoria da dependência’, seja na sua versão marxista, seja na versão da ‘dependência associada’, não foi motivo para que se tornasse mais nacionalista como se poderia imaginar, mas, pelo contrário, que copiasse a clássica perspectiva internacionalista da esquerda européia do século XIX. Partindo do pressuposto de que na América Latina não seria possível haver um empresariado nacional, a primeira versão da teoria da dependência concluiu pela revolução socialista, e a segunda pela associação com os países ricos [9]. Por outro lado, a própria prioridade dada ao desenvolvimento econômico foi perdida pela esquerda, na medida em que esta assumiu que, no capitalismo, o desenvolvimento ocorreria de qualquer maneira, de forma que caberia a ela se preocupar com a democracia e a justiça social. Entretanto, embora seja verdade que, para os países que se desenvolveram originalmente e completaram sua revolução industrial, o desenvolvimento capitalista tenda a ser auto-sustentado [10], isto não é verdade para os demais, que foram submetidos a processos de imperialismo. Nesse caso suas elites se tornaram ambíguas em relação aos interesses nacionais porque, ao mesmo tempo em que se identificavam com esses interesses, eram ideologicamente dependentes do centro desenvolvido [11]. Esse tipo de consciência, porém, não ocorreu para as esquerdas latino-americanas e brasileiras, cujos intelectuais são também dependentes, de forma que fizeram o que é inerente à situação de dependência não criticada: copiaram o internacionalismo das esquerdas européias, não se dando conta de que estas só adotaram o internacionalismo em teoria, enquanto se associavam aos empresários na construção da nação e na participação em estratégias nacionais de desenvolvimento.

O paradoxo da esquerda

Se o centro varia geograficamente, seria interessante perguntar o que acontece com o centro no Brasil ou na América Latina. Está mais à esquerda ou mais à direita do que nos países desenvolvidos da Europa continental? Não sei responder com clareza, porque a divisão entre esquerda e direita enfrenta uma dificuldade fundamental na região. Não quero falar por toda a América Latina, onde a esquerda hoje está presente no governo da Argentina, do Uruguai, do Chile, da Venezuela e do Brasil. Conforme observou Wilfredo Lozano (2005: 145), “a esquerda hoje no poder resulta ser um complexo produto de sua reacomodação reformadora, o que a obrigou a girar para o centro”. Quanto, entretanto, girar para o centro? E o giro é apenas para o centro ou para a direita? Ditmar Dimoser (2005: 28), escrevendo sobre a democracia na América Latina, pergunta: “Estará o futuro latino-americano caracterizado por democracias sem democratas?” Tal pergunta envolve um paradoxo absoluto. No caso do Brasil, em relação não à democracia mas à esquerda, a questão está dominada por um outro paradoxo que talvez não esteja ausente do restante da América Latina: a esquerda ganha as eleições, na medida em que partidos de esquerda ou de centro-esquerda alcançam a maioria no parlamento, mas não governa. Proponho denominar esse fenômeno de ‘paradoxo da esquerda’. Será ele verdadeiro? E, se for, há uma explicação para ele, ou é um paradoxo puro?

Tabela 1: Deputados federais eleitos – esquerda e direita: 1986-2002 (em %)

Ano

Esquerda

Direita

1986

63,0

37,0

1990

48,9

51,1

1994

54,6

45,4

1998

57,5

42,5

2002

60,6

39,4

Fonte: Iuperj. Autor: Jairo Nicolau. Partidos considerados de esquerda: PT, PSDB, PMDB, PDT, PSB, PCB/PPS, PcdoB e PV; os demais foram considerados de direita.

Para responder a essas perguntas, parto do pressuposto de que a ideologia é determinante do voto no Brasil. Esse pressuposto teórico foi colocado em dúvida por uma série de analistas internacionais, geralmente de filiação conservadora, que também tendem a negar a relevância da diferença esquerda-direita, mas afinal as pesquisas deixaram claro que os eleitores, embora não tenham uma estrutura ideológica definida, para a qual seriam necessários conhecimentos que eles não possuem, são possuidores de uma identificação ideológica suficiente que lhes permite distinguir as posições de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadoras. Singer (1999) testou essa hipótese em relação ao Brasil e a viu confirmada. O Brasil transitou para a democracia em 1985. Desde então, conforme podemos ver pela Tabela 1, os partidos que dominam o parlamento brasileiro (pela ordem histórica, o PMDB, o PSDB e o PT) sempre se autodefiniram como partidos de esquerda – os dois primeiros, de centro-esquerda, o último, de esquerda, e, juntamente com os pequenos partidos de esquerda, lograram a maioria na Câmara dos Deputados [12]. Entre os três presidentes eleitos diretamente pelo povo desde 1985, dois se autodenominaram de esquerda, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, e apenas um aceitava ser de direita, Fernando Collor. É verdade que nem todos os parlamentares desses partidos podem ser considerados de centro-esquerda: alguns, inclusive entre os do PT depois que se tornou governo, são antes de centro-direita, mas os programas e as mensagens políticas que passam são de centro-esquerda.

O motivo pelo qual no Brasil os partidos e os candidatos presidenciais de esquerda tendem a ser eleitos com mais freqüência do que os de direita é evidente. Está diretamente relacionado com a brutal desigualdade social existente no país. Esta desigualdade, somada aos baixos níveis de educação e de formação cívica do povo brasileiro, o fazem esperar dos políticos um discurso voltado para uma maior distribuição de renda. Os políticos de esquerda podem fazer isto naturalmente, sem necessariamente serem populistas; já os candidatos de direita só são capazes de formular um discurso dessa natureza sendo populistas. Os candidatos de direita que ganham eleições executivas no Brasil são quase invariavelmente políticos populistas e demagógicos, que fazem um discurso que não corresponde a suas convicções. Já os candidatos de esquerda podem ser mais autênticos, embora não estejam livres do populismo.

Entretanto, uma vez eleitos, nem o presidente nem os parlamentares de esquerda fazem um governo de esquerda, ou seja, que efetivamente contribua para a redução da injustiça social no país. Podem incluir em suas administrações algumas políticas sociais redistributivas, atendendo assim à pressão dos pobres, mas afinal seus governos promoverão principalmente os interesses dos ricos, e a renda e a riqueza continuarão a se concentrar. Isto foi possível observar no governo Sarney (1985-89) imediatamente após a transição democrática. O próprio presidente José Sarney não era um político da esquerda, mas um nacionalista populista que militou no partido do governo durante o regime militar, mas o parlamento que foi eleito em 1986 era dominado por políticos de centro-esquerda que haviam se oposto ao regime militar. Não obstante, não há nada que se possa identificar como de esquerda no governo Sarney. Pelo contrário, nos últimos dois anos o governo caminhou para a direita na medida em que o presidente firmou acordo com um grande grupo conservador que se formou então no Congresso com o nome de ‘Centrão’.

O primeiro presidente eleito pelo voto popular foi Fernando Collor, em 1989. Era um político conservador, mas é importante salientar que, mais que de direita, ele era um político populista que logrou estabelecer um contato direto com a população em nome da moralização da burocracia, especificamente dos salários abusivos que um certo número de altos funcionários haviam logrado aproveitando-se da alta inflação em vigor desde 1980 e de falhas legais no sistema de correção monetária dos salários [13]. Sua mensagem moralista, entretanto, não impediu que ele próprio se envolvesse em corrupção a ponto de, dois anos depois, ser afastado do governo através de um processo de impedimento.

O novo presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, tinha uma conhecida trajetória, inicialmente, como intelectual de esquerda, e, depois, como político de centro-esquerda. Provinha de um partido, o PSDB, que se pretende socialdemocrata inclusive no nome: Partido da Social Democracia Brasileira. Foi eleito porque, como Ministro da Fazenda no governo intermediário de Itamar Franco, logrou controlar a alta inflação brasileira através de um plano de estabilização que neutralizava com competência a inércia inflacionária. Entretanto, seu governo foi antes um governo de centro-direita do que de esquerda. Foi de centro-esquerda na área social, na medida em que aumentou a carga tributária e gastou mais e com mais competência na educação, na saúde, na reforma agrária e na assistência social. Mas, ao adotar uma política cambial que aprofundou a desnacionalização da economia brasileira e levou a duas crises de balanço de pagamentos, e uma política monetária de elevadas taxas de juros do Banco Central, que beneficiou os rentistas, ou seja, os que vivem de juros, e o sistema financeiro que recebe comissão dos rentistas, seu governo acabou concentrando renda.

Mais surpreendente é o governo de direita que vem fazendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como o PT se declarava um partido claramente mais à esquerda do que o PSDB, os mercados financeiros nacionais e internacionais pressupunham que sua eleição representasse uma clara guinada do Brasil para a esquerda. A segunda crise de balanço de pagamentos do governo Cardoso, a de 2002, deveu-se em parte a essa desconfiança. Entretanto, o que se viu foi um governo que, embora conservasse suas alianças com o sindicalismo e com movimentos sociais como o Movimento dos Sem-Terra, revelou-se logo claramente de direita. Isto ficou especialmente claro em relação à política monetária: o nível da taxa de juros básica do Banco Central, que já era a mais alta do mundo, aumentou ainda mais para satisfazer os rentistas. A taxa de juros real em 2005 foi em média de 12% quando o risco Brasil não justificava mais do que 3%. De um gasto com juros pelo setor público estimados em R$ 160 bilhões em 2005, correspondendo a 8% do PIB, apenas R$ 40 bilhões são justificáveis: o restante é mera transferência aos credores do Estado brasileiro, que se tornou deles reféns com a desculpa de que essa taxa é necessária para combater a inflação. Temos assim, chancelada por um governo de esquerda, uma brutal transferência de renda dos pobres e da classe média que pagam impostos (principalmente indiretos no Brasil) para os ricos que recebem juros e, no mercado financeiro, comissões. Por outro lado, sua política social não revelou inovações. O único gasto social que aumentou foi o assistencialista, através da substituição da Bolsa-Escola, que exigia dos pais pobres que os filhos estivessem na escola, para a Bolsa-Família. Ou seja, ao invés de ênfase em políticas universalistas, que são de esquerda, adotou uma política conservadora de focalização. E afinal, no terceiro ano de seu governo, tornou-se público que esse governo e o próprio Partido dos Trabalhadores, que durante anos insistira em seus padrões éticos, havia se envolvido em um processo sem precedentes de corrupção política, que ficou conhecido com o nome de ‘escândalo do mensalão’, na medida em que o PT pagava com dinheiro o apoio que recebia de deputados de outros partidos, financiando-se através de recursos oriundos evidentemente de empresas beneficiadas pelo governo [14]. Em síntese, conforme observou Fernando Cardim de Carvalho (2005: 10, 15) em um trabalho recente sobre a esquerda e a política econômica no Brasil, “o primeiro governo FHC foi quase a antítese do que seria esperado da passagem pelo poder de um partido autodenominado socialdemocrata”. Por outro lado, “poucos discordariam da afirmação que o governo Lula não perseguiu nenhuma das prioridades que caracterizam qualquer governo de esquerda no século XX”. Em outras palavras, foram governos eleitos pela esquerda, mas não foram governos de esquerda.

Pode a esquerda governar o capitalismo?

Não tivemos, portanto, governos de esquerda no Brasil desde a transição democrática de 1985, não obstante o eleitorado votasse principalmente em candidatos de esquerda. Antes de tentar explicar esse fato, porém, uma pergunta preliminar é essencial: pode a esquerda governar o capitalismo? É possível pensar em governos de esquerda governando um sistema econômico que continua essencialmente capitalista, ou seja, coordenado principalmente pelo mercado e voltado principalmente para o lucro privado?

Se examinarmos a experiência de um sem-número de governos de partidos ou de coalizões de centro-esquerda havida na Europa desde a Segunda Guerra Mundial a resposta é positiva. Partidos que agem nos termos da definição de esquerda, que ofereci nas primeiras seções deste trabalho, têm-se revelado muitas vezes capazes de governar o capitalismo mais competentemente do que os capitalistas. São de esquerda porque buscam reformar esse capitalismo, porque procuram distribuir melhor a renda e caminhar na direção de uma maior igualdade de oportunidades, porque defendem uma maior liberdade individual nos quadros de uma sociedade mais solidária. São sempre partidos de centro-esquerda. Não existe a hipótese de um partido de extrema-esquerda governar um país capitalista. Não conheço sequer uma experiência de tentativa desse tipo. O governo Allende, por exemplo, assim como muitos outros governos de esquerda que foram derrubados por forças de direita nacionais e externas, não era um governo de extrema-esquerda. Foi apenas um governo de esquerda que, não sabendo governar o capitalismo melhor do que os capitalistas, cometeu erros que facilitaram a reação da direita e do imperialismo e o golpe sangrento.

Para governar o capitalismo melhor e com mais justiça do que uma coalizão de direita, uma coalizão de esquerda precisa reconhecer a lei básica do capitalismo: a taxa de lucro dos empresários, dos capitalistas ativos, deve ser mantida em nível satisfatório para que eles continuem a investir. Conforme observou Przeworski, os empresários têm o ‘poder de veto’ sobre o sistema [15]. Se deixam de investir, o crescimento econômico estanca e o país entra em crise. Por isso, algum tipo de associação com os empresários produtivos é essencial. Já os capitalistas rentistas, que no passado viviam de aluguéis e hoje vivem principalmente de juros pagos pelo governo, não podem ser aliados de um governo de esquerda. Também não pode ser aliada de uma coalizão de esquerda uma parte dos empresários produtivos que se recusam a fazer compromissos com os trabalhadores e as classes médias profissionais. Como também não podem fazer parte do sistema de apoio a uma coalizão de esquerda todo um grupo de profissionais que, sabendo que o capitalismo hoje é o capitalismo do conhecimento ou dos técnicos, aproveitam-se desse fato para obter ganhos extraordinários apoiados em seu conhecimento técnico. Não podem porque um governo só será de esquerda se, além de ser formado por políticos que se definem como de esquerda, lograr, ainda que marginalmente, desconcentrar a renda e a riqueza, transformar em uma realidade mais concreta a igualdade de direitos entre pobres e ricos, entre mulheres e homens, e entre as diversas raças, avançar na implantação de uma maior igualdade de oportunidades de renda, poder e prestígio social, e dar à democracia um caráter mais representativo e mais participativo. Não será possível ou realista esperar grandes ganhos nessa matéria, mas a experiência mostra que países que foram governados mais longamente por coalizões de esquerda, assim como países nos quais o centro esteja mais à esquerda, alcançam níveis mais elevados de democracia e de justiça social. Não é por outra razão que o modelo de capitalismo existente nos países escandinavos é superior em termos de justiça e de democracia quando comparado ao dos países do modelo renano, o qual, por sua vez, é claramente superior ao nível de justiça social e de democracia existente nos Estados Unidos. Não é fácil comprovar uma afirmação geral como esta, mas, quando se comparam, entre outros indicadores, os índices de violência, os de distribuição de renda e as formas de financiamento de campanhas políticas, não será difícil chegar a essa conclusão [16].

Dentro dessa perspectiva, merece citação especial a experiência recente de oito anos de governo trabalhista na Grã-Bretanha. Esse governo iniciou com uma proposta de uma ‘terceira via’ [17] – um nome inadequado para um conjunto de idéias concretas sobre como um governo de esquerda moderna pode governar o capitalismo mais competentemente que os capitalistas. Essas idéias, embora estivessem apoiadas em um sociólogo de esquerda de alto prestígio como Tony Giddens, foram amplamente criticadas pelas esquerdas de outros países e mesmo da Grã-Bretanha [18]. Na Europa continental, especialmente, duvidou-se que fossem idéias verdadeiramente de esquerda, ignorando que na Grã-Bretanha o centro está mais à direita do que no modelo renano da França e da Alemanha. Entretanto, a prova de qualquer coisa só pode ser empírica. Cabe, portanto, perguntar o que aconteceu naquele país depois de oito anos de governo trabalhista. Nesse período, que terminou com uma nova reeleição, os trabalhistas, apesar do apoio inconsiderado que deram à trágica invasão americana do Iraque, foram bem-sucedidos em realizar um governo de esquerda. Em um tempo de globalismo, no qual os seus ideólogos não se cansam em afirmar que todos os países estão submetidos a uma ‘camisa-de-força’, não tendo alternativa senão seguir o modelo neoliberal americano [19], os trabalhistas britânicos fizeram o caminho inverso: estabeleceram o salário-mínimo, tornaram os impostos mais progressivos e aumentaram em cinco pontos percentuais o gasto em educação e saúde, enquanto apresentavam um excelente desempenho econômico [20]. Com isso melhorou a distribuição de renda, fazendo que o capitalismo britânico, que, desde Thatcher, é sempre identificado com o sistema americano, se aproximasse do modelo renano ao invés de se afastar, como prediz a tese do caminho único [21].

O descompasso entre o povo e a sociedade civil

O governo de esquerda em países capitalistas é, portanto, viável. As experiências européias não deixam dúvida a respeito. Por que, então, no Brasil não tem sido viável, ainda que os eleitores elejam candidatos de esquerda ou, pelo menos, com um discurso de esquerda? A resposta mais geral a esta questão está no fato de que, no Brasil, como nos demais países em desenvolvimento, há um grande descompasso entre o ‘povo’ e a ‘sociedade civil’, e é nesta última que está sempre o verdadeiro poder político nas democracias. Coloquei as duas expressões entre aspas porque as estou usando em um sentido muito preciso: povo, aqui, é o conjunto de cidadãos iguais perante a lei, dotados cada um do direito de um voto; sociedade civil é esse povo, no qual, porém, o poder de cada cidadão é ponderado pelo dinheiro, conhecimento e capacidade de organização que ele detém. Não estou, portanto, confundindo sociedade civil, que é um conceito clássico, com ‘organizações da sociedade civil’, principalmente organizações públicas não-estatais de advocacia política – as chamadas ONGs stricto senso –, que são a base da lenta transição das atuais democracias de opinião pública para as democracias participativas. Enquanto o conceito de organizações da sociedade civil permite o desenvolvimento de uma teoria de emancipação social através da emergência da democracia participativa ou da democracia deliberativa, o conceito de sociedade civil não tem caráter normativo [22]. Sugere apenas que a sociedade politicamente organizada – ou seja, a sociedade civil – tende a ser mais conservadora e talvez seja menos democrática do que o povo, porque nela aqueles indivíduos que possuem mais capital, mais conhecimento técnico, organizacional e comunicativo, e estão inseridos em organizações, sejam elas corporativas ou públicas não-estatais, terão individualmente mais poder do que os cidadãos comuns.

Quanto mais avançada for uma democracia, mais democratizada será sua sociedade civil, e, por isso mesmo, menor será a diferença entre ela e o povo [23]. Enquanto, no caso de uma sociedade civil autoritária, ela própria não se distingue com clareza do conceito de elites, a distinção é clara no caso de sociedades civis democráticas. Entende-se aqui por uma sociedade civil mais democrática exatamente aquela na qual as diferenças de poder de seus participantes em relação ao poder de cada cidadão no povo são menores. Ora, isto acontecerá na medida em que, em cada sociedade, aumentar o grau de igualdade de renda, de conhecimento, de capacidade de organização e, portanto, de poder político real. Ou seja, aumentar o grau de justiça social existente nessa sociedade. O que mostra que, embora liberdade, garantida pela democracia, e justiça, que é trazida pelo crescente respeito aos direitos sociais, sejam objetivos políticos independentes, a teoria política indica que afinal são também interdependentes quando pensamos em termos de graus de liberdade e em graus de justiça. Sociedades como a sueca, ou a suíça, na qual as desigualdades são relativamente pequenas, são sociedades em que a sociedade civil é fortemente democrática, diferenciando-se pouco do povo. Sendo assim, nessas sociedades, uma vez eleito pelo povo um governo de esquerda, esse governo, que afinal reflete o poder da sociedade civil, fará uma administração de esquerda.

Enquanto isso, em sociedades menos democráticas e menos justas, como são as latino-americanas, o descompasso entre o povo e a sociedade civil é enorme. O povo não tende necessariamente a ser mais democrático do que a sociedade civil, como bem mostram as pesquisas sobre o tema que realizam entidades como o Latinobarômetro, mas tende a ser mais de esquerda, na medida em que demanda do Estado políticas ativas mais distributivas. Dado esse descompasso, uma vez eleito um governo de esquerda, a tendência dos novos governantes, para alcançar ‘legitimidade’ política junto à sociedade civil, será a de identificarse rapidamente com as percepções e valores centrais dessa sociedade que é a fonte real de legitimidade. A fonte da legalidade política, nas democracias, é sempre o povo, mas a da legitimidade é dada antes pelo apoio da sociedade civil. Observe-se que esta afirmação que faço, como quase todas as demais, obedece a um critério histórico antes que normativo. Do ponto de vista normativo seria melhor que legitimidade e legalidade se confundissem, mas neste caso bastar-nos-ia apenas um conceito. Por isso, e a partir de Weber, uso o conceito de legitimidade para indicar o fato de que um governo conta com o apoio da sociedade civil, enquanto que emprego o conceito de legalidade para dizer que ele foi eleito regularmente pelo povo. O primeiro é um conceito real – sociológico e histórico; o segundo, um conceito formal – jurídico no sentido estrito desta palavra. Quando o governo está recém-eleito, a tendência será de a legalidade e a legitimidade política coincidirem, mesmo que o governo eleito seja de esquerda e não tenha contado na eleição com o apoio da sociedade civil. Isto porque, eleito o novo governo, a sociedade civil tenderá a dar um voto de confiança aos novos governantes. Entretanto, a sociedade civil, e principalmente seus componentes mais à direita, esperam que o novo governo, ainda que conservando uma retórica de esquerda, revele rapidamente seu respeito pela propriedade e pelos contratos – pela ordem estabelecida, portanto – e que não adote políticas redistributivas fortes. Caso contrário, o governo correrá o risco de perder seu apoio.

No Brasil, logo após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva no final de 2002, foi o que aconteceu. O governo contou com essa boa vontade inicial das elites, e para conservá-la tratou de conformar-se quase integralmente com essa vontade. No plano da política econômica, principalmente, em que os interesses da direita rentista e financeira eram muito grandes, a conformidade foi total e permanente. E, com isso, o governo deixou simplesmente de ser de esquerda. Atendeu a interesses da classe média profissional que compõe principalmente o PT, realizando uma ocupação de cargos públicos que antes vinham sendo tradicionalmente reservados principalmente à burocracia profissional do Estado. Este ‘aparelhamento’ do Estado, porém, não é uma política de esquerda, mas apenas uma forma de corporativismo ou de clientelismo. Com a estratégia de conformidade, porém, o governo logrou nos primeiros dois anos não apenas acalmar os mercados financeiros, que estavam em crise no momento da eleição, mas logrou manter durante os dois primeiros anos o apoio da sociedade civil. Só o perdeu no terceiro ano, em função das denúncias de corrupção que então surgiram. Foi só a partir desse momento que o governo Lula perdeu legitimidade, embora conservasse a legalidade, e, por isso, paralisou-se.

O descompasso entre uma sociedade civil mais conservadora e um povo que, não obstante o autoritarismo de que também é vítima, vota em candidatos de esquerda, explica, portanto, por que no Brasil a esquerda tende a ganhar as eleições, mas afinal não governa. O sistema de incentivos existente em uma sociedade como essa leva naturalmente à infidelidade dos políticos a seus comprometimentos. Há outras razões que explicam por que a esquerda tem dificuldade de governar em um país como o Brasil. Já me referi ao caso da extrema-esquerda, cuja incapacidade de governar o capitalismo é auto-explicativa. Em todos os países temos também uma esquerda utópica que opta explicitamente por não ser governo, preferindo, ao invés, conservar seu papel de crítica do governo. Em um caso como esse, porém, a pergunta central deste trabalho não se aplica.

O republicanismo necessário e o corporativismo

Ficando, porém, apenas com os partidos políticos de esquerda que querem governar na democracia, a pergunta seguinte ao que foi até aqui exposto é saber se, dado o descompasso existente no Brasil entre povo e sociedade civil, seja inevitável que os partidos ou coalizões de esquerda, uma vez eleitos, não façam governos de esquerda. Não creio. Certamente os partidos de esquerda vitoriosos terão que fazer compromissos – afinal a política é a arte do compromisso. Certamente não realizarão tudo o que seu programa prevê, ou mesmo o que foi prometido nas eleições – isto sempre acontece nas democracias, com partidos de qualquer orientação. Mas eu acredito que, em um país capitalista de desenvolvimento médio como o Brasil, é possível haver governos de esquerda.

O que é preciso para isto? A meu ver, duas coisas: espírito republicano e habilidade política. O espírito ou a virtude republicana é essencial. Não vou discutir aqui se ela é viável ou não. No contexto desse trabalho suponho que é, a partir da já referida existência de dois (e não de um só) instintos humanos básicos: o da sobrevivência e o da convivência. Estabelecida essa possibilidade como pressuposta, entendo por republicano o político ou o partido político que, em alguns momentos, arrisca perder o apoio de seus eleitores para agir de acordo com suas convicções do que seja o interesse público. Seus apoiadores políticos querem algo que é contrário ao que o político julga ser o interesse nacional. Não importam quais são as razões de uns ou do outro. O importante é que há a divergência. Se o político tem a coragem necessária para arriscar sua reeleição agindo de acordo com suas convicção, ele será republicano, e seu republicanismo poderá ser uma saída para o paradoxo da esquerda no Brasil.

Não basta, porém, espírito republicano. É preciso também competência política. A política é uma arte na qual não valem apenas princípios éticos e boas intenções. Vale também a habilidade de fazer compromissos e de argumentar para alcançar maioria. Porque, afinal, a política não é outra coisa senão a arte do compromisso e da argumentação. É o exercício da prudência, na perspectiva de Aristóteles; é a busca do bem-comum, na perspectiva tomista e de Locke; é a virtù do governante na busca dos objetivos republicanos, na visão de Maquiavel; é o exercício da ética da responsabilidade, na forma de ver a política de Max Weber. Não é, portanto, uma tarefa fácil. Por outro lado, estas qualidades e responsabilidades da política, que a fazem a mais nobre das profissões, não estão limitadas aos políticos de esquerda. Com freqüência também são observadas em políticos conservadores, os quais, porém, não enfrentam as contradições que os políticos de esquerda enfrentam. Por isso sua tarefa é mais difícil, por isso seu espírito republicano tem que ser mais forte, por isso sua habilidade política é mais necessária.

Quando vemos a esquerda no Brasil se curvar a uma sociedade civil que é principalmente de direita, e que se apóia em um sistema internacional cujos interesses são contrários aos do país, podemos explicar o fato pela força dessas elites conservadoras. É preciso, entretanto, não limitar a análise apenas a esse fato e reconhecer que há aqui também uma falta gritante de espírito republicano e de competência política. Isto faltou para o PSDB, e faltou em maior grau para o PT. Houve, no caso do PT, nas palavras de Tales Ab’Sáber, em um debate público, “um descolamento da política do espaço social ainda mais radical do que já é; a política se autonomiza, se transforma em um grande balcão de negócios” [24]. Esse descolamento ou descompasso, neste caso, se aprofundou porque o PT, embora tivesse uma expectativa de ocupação a longo prazo do poder político (como o PSDB havia tido anteriormente), não foi capaz de fazer a crítica do corporativismo que está nas suas origens sindicais. Um líder sindical é legitimamente corporativista: seu papel é defender os interesses de seus associados, do grupo econômico que representa. Um político, porém, não pode ser corporativista. De acordo com a ética da política que hoje prevalece nas sociedades democráticas, ele deve, em princípio, ser republicano, distinguindo não só os seus interesses próprios, mas os interesses daqueles que diretamente representa, dos interesses nacionais. O PT, como partido de origem sindical, nunca foi capaz de fazer essa distinção, e também por essa razão não foi capaz de enfrentar o poder das elites no seio da sociedade civil brasileira. Nas palavras de Marcos Nobre, nesse mesmo debate, o PT geriu o governo como se fosse um partido e geriu um partido como se fosse um sindicato. Por outro lado, salientou ainda Nobre, faltou ao governo do PT capacidade para oferecer ao país uma alternativa de política não apenas econômica, mas também social: a crise acontece “porque não se consegue de fato mobilizar um discurso político e estabelecer um modelo político para o Brasil” [25]. Ao fazer essas afirmações, ele volta ao problema do descompasso entre o povo e a sociedade civil brasileira.

Apesar da gravidade da crise por que vem passando o PT e o governo Lula, que certamente desgastou-o profundamente, tem razão Sader quando critica a tentativa de “desqualificar o arcabouço histórico da esquerda, responsável pelos melhores momentos da história da humanidade, em nome de comportamentos que significaram o abandono desses valores e a adoção de métodos e políticas de direita” [26]. Por outro lado, Fabiano Santos, naquele mesmo debate, defendeu a tese de que, apesar da crise, o PT continua a ser “o representante da socialdemocracia no Brasil”. Tenho feito muitas vezes afirmação semelhante. Embora não seja impossível, a hipótese de o PSDB preencher esse papel continua remota, dados os apoios com que o partido conta. Como continua incerta a possibilidade de esse partido dar um passo adiante e tornar-se um partido social-liberal. A possibilidade de surgir um novo partido de esquerda mais capaz de governar também não parece provável. O efeito maior da crise política foi o de enfraquecer o partido, mas não o levou ao esfacelamento. Os resultados das eleições presidenciais de 2006 são agora incertos, mas é provável que o parlamento tenha novamente uma maioria de esquerda. Em qualquer hipótese, nada sugere que o paradoxo da esquerda no Brasil encontre solução a curto prazo: o povo continuará votando na esquerda mas esta não governará.

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Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor da Fundação Getúlio Vargas e autor, entre outros, de Desenvolvimento e crise no Brasil: 1930-2002. Trabalho apresentado à conferência “A esquerda na América Latina”, organizada pelo Instituto Universitário de Investigação Ortega y Gasset, com a colaboração da Fundação Friedrich Erbert e da Fundação Pablo Iglesias. Madri, nov. 2005.

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Notas

[1] Bresser-Pereira (1996, 2000). No segundo trabalho eu desenvolvi mais extensamente esse conceito, contrastando-o com o de Bobbio.

[2] Sader (1995: 164). Itálicos do autor.

[3] Whitaker, Chico (2005: 15 e 19). Ver também Aguiton et al., Fourgier (2004).

[4] Expus mais amplamente o conceito de social-liberalismo, aplicado principalmente à reforma do Estado, em Bresser-Pereira (2004). A França e a Alemanha continuam resistindo à reforma da gestão pública, presas que estão ao modelo burocrático clássico. Esta é uma explicação importante para seu mau desempenho econômico nos últimos dez anos.

[5] Sader (1995: 194).

[6] Sader (2003: 175-6).

[7] Embora profundas modificações sejam necessárias na política econômica do governo, o calote, tanto da dívida externa quanto da interna, não se justifica. Mais importante é reduzir drasticamente a escandalosa taxa de juros Selic (o que importaria em redução do valor presente da dívida) e adotar uma nova política de proteção ao capital e ao trabalho nacionais, interrompendo a absurda abertura financeira do Brasil ao capital externo.

[8] Celso Furtado. A construção interrompida (1992).

[9] Bresser-Pereira (2005).

[10] Furtado (1961).

[11] Em “Do Iseb e da Cepal à Teoria da Dependência” (Bresser-Pereira, 2005), chamei essa dependência não de “associada” nem de contrapartida da ‘superexploração imperialista’, mas de ‘nacional-dependente’ – um oxímoro que salienta o caráter contraditório das elites empresariais e intelectuais em países dependentes como o Brasil.

[12] Não lograram, todavia, maioria no Senado.

[13] Esses funcionários haviam recebido o nome de “marajás”, e o candidato comprometeu-se habilmente a acabar com esse privilégio.

[14] A imprensa tem feito ampla cobertura desse escândalo. Talvez a melhor reportagem até agora escrita sobre ele tenha sido feita por Norman Gall (2005). O governo Lula e o PT reconheceram as irregularidades, mas tentaram identificá-las com ‘caixa dois’ em campanhas eleitorais, ou seja, com doações de dinheiro não declaradas ao fisco e aos tribunais eleitorais. Dessa forma, o PT estaria fazendo algo que seria usual no processo de financiamento de campanhas eleitorais. No caso desse escândalo, porém, foi ficando claro que o processo envolvia corrupção stricto senso, seja pela compra de votos de deputados de outros partidos, seja pelo fato de que os recursos provinham ou de empresas estatais cujos contratos de publicidade eram sobrefaturados, ou de fornecedores do Estado que compensavam suas simples doações com sobrefaturamento de seus serviços. Além disso, não se tratava de simples financiamento de campanhas eleitorais, já que o sistema passou a fazer parte do governo federal, como antes fizera parte dos governos municipais em que o PT elegera o prefeito.

[15] Przeworski (1985).

[16] As pesquisas de Lijphart (1999) e de Esping-Andersen (1992) sobre modelos de democracia e de capitalismo são significativas nesse ponto.

[17] ‘Terceira via’ foi uma expressão utilizada durante muito tempo, principalmente por autores católicos, para sugerir que haveria uma terceira possibilidade em relação ao conflito entre capitalismo e socialismo. A terceira via britânica não tinha essa pretensão, mas pretendia apenas ser uma forma de manifestação da socialdemocracia ou, mais precisamente, do social-liberalismo: a socialdemocracia que, embora garantindo os direitos sociais, usa mais os mecanismos de mercado, inclusive no oferecimento de serviços sociais e científicos, tornando assim mais eficiente o aparelho do Estado.

[18] Giddens (1994, 2000); Org. (2001).

[19] Thomas Friedman (2000) não tem dúvida em usar a expressão ‘straight-jacket’ para argumentar que só existe uma forma possível de capitalismo eficiente: a americana.

[20] A França, a Alemanha e a Itália apresentaram desempenho pior por motivos diversos, entre os quais, a meu ver, não foi por não terem reduzido a proteção ao trabalho, como insiste a direita, mas por não terem feito a reforma da gestão pública ou reforma gerencial do Estado, da qual a Grã-Bretanha foi pioneira.

[21] Pearce e Dickson (2005).

[22] Esse conceito de sociedade civil, porém, foi muito útil para a análise que fiz, na segunda metade dos anos 70, da transição democrática que começava então.

[23] Para uma excelente resenha do debate sobre as organizações da sociedade civil que surgiram como uma alternativa emancipadora nos anos 90, ver Lavalle (2003).

[24] Tales Ab’Sáber, em debate na Folha de S. Paulo, 13 out. 2005.

[25] Marcos Nobre, em debate na Folha de S. Paulo, 23 out. 2005.

[26] Sader, “PT, Direita e Esquerda” (2005: 3).

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil. https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=430

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